O PRANTO DE MARIA PARDA

ADVERTENCIA IMPORTANTE

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ADOLESCENTES DE UM E OUTRO SEXO!

Sob um titulo que vos poderá attrahir este livro contem mysterios de iniquidade.

Se o abrisseis depois d'este pregão, só de vós mesmos, vos podéreis queixar. Não é para vós que foi escripto. Quem o apresentasse, ou o permittisse, só esse seria o seu Invenenador.

Estas palavras escreveu-as Antonio Feliciano de Castilho na primeira pagina da traducção dos Amores de Ovidio.

O Pranto de Maria Parda não encerra mysterios de iniquidade, mas tambem não deve ser lido pela innocencia.

PRANTO DE MARIA PARDA

Por que vio as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro, e ella não podia viver sem elle.

Eu so quero prantear

Este mal que a muitos toca;

Que estou ja como minhoca

Que puzerão a seccar.

Triste desaventurada,

Que tão alta está a canada

Pera mi como as estrellas;

Oh! coitadas das guelas!

Oh! guelas da coitada!

Triste desdentada escura,

Quem me trouxe a taes mazelas!

Oh! gengivas e arnellas,

Deitae babas de seccura;

Carpi-vos, beiços coitados,

Que ja lá vão meus toucados,

E a cinta e a fraldilha;

Hontem bebi a mantilha,

Que me custou dous cruzados.

Oh! Rua de San Gião,

Assi 'stás da sorte mesma

Como altares de quaresma

E as malvas no verão.

Quem levou teus trinta ramos

E o meu mana bebamos,

Isto a cada bocadinho?

Ó vinho mano, meu vinho,

Que ma ora te gastamos.

Ó travessa zanguizarra

De Mata-porcos escura,

Como estás de ma ventura,

Sem ramos de barra a barra.

Porque tens ha tantos dias

As tuas pipas vazias,

Os toneis postos em pé?

Ou te tornaste Guiné

Ou o barco das enguias.

Tríste quem não cega em ver

Nas carnicerias velhas

Muitas sardinhas nas grelhas;

Mas o demo ha de beber.

E agora que estão erguidas

As coitadas doloridas

Das pipas limpas da borra,

Achegou-lhe a paz com porra

De crecerem as medidas.

Ó Rua da Ferraria,

Onde as portas erão mayas,

Como estás cheia de guaias,

Com tanta louça vazia!

Ja m'a mim aconteceo

Na manhan que Deos naceo,

Á hora do nacimento,

Beber alli hum de cento,

Que nunca mais pareceo.

Rua de Cata-que-farás,

Que farei e que farás!

Quando vos vi taes, chorei,

E tornei-me por detras.

Que foi do vosso bom vinho,

E tanto ramo de pinho,

Laranja, papel e cana,

Onde bebemos Joanna

E eu cento e hum cinquinho.

Ó tavernas da Ribeira,

Não vos verá a vós ninguem

Mosquitos, o verão que vem,

Porque sereis areeira.

Triste, que será de mi!

Que ma ora vos eu vi!

Que ma ora me vós vistes!

Que ma ora me paristes,

Mãe da filha do ruim!

Quem vio nunca toda Alfama

Com quatro ramos cagados,

Os tornos todos quebrados!

Ó bicos da minha mama!

Bem alli ó Sancto Esprito

Ia eu sempre dar no fito

N'hum vinho claro rosete.

Oh! meu bem doce palhete,

Quem pudera dar hum grito!

Ó triste Rua dos Fornos,

Que foi da vossa verdura!

Agora rua d'amargura

Vos fez a paixão dos tornos.

Quando eu, rua, per vós vou,

Todolos traques que dou

São suspiros de saudade;

Pera vós ventosidade

Naci toda como estou.

Fui-me ó Poço do chão,

Fui-me á praça dos canos;

Carpi-vos, manas e manos,

Que a dezaseis o dão.

Ó velhas amarguradas,

Que antre tres sete canadas

Sohiamos de beber,

Agora, tristes! remoer

Sete raivas apertadas.

Ó rua da Mouraria,

Quem vos fez matar a sêde

Pela lei de Mafamede

Com a triste d'agua fria?

Ó bebedores irmãos,

Que nos presta ser christãos,

Pois nos Deos tirou o vinho?

Ó anno triste cainho,

Porque nos fazes pagãos?

Os braços trago cansados

De carpir estas queixadas,

As orelhas engelhadas

De me ouvir tantos brados.

Quero-m'ir ás taverneiras,

Taverneiros, medideiras,

Que me dem hua canada,

Sôbre meu rosto fiada,

A pagar la polas eiras.

(PEDE FIADO À BISCAINHA.)

Ó Senhora Biscaïnha,

Fiae-me canada e meia,

Ou me dae hua candeia,

Que se vai esta alma minha.

Acudi-me dolorida,

Que trago a madre cahida,

E çarra-se-me o gorgomilo:

Emquanto posso engoli-lo,

Soccorei-me minha vida.

BISCAINHA

Não dou eu vinho fiado,

Ide vós embora, amiga.

Quereis ora que vos diga?

Não tendes isso aviado.

Dizem lá que não he tempo

De pousar o cu ao vento.

Sangrade-vos, Maria Parda;

Agora tem vez a Guarda

E a raia no avento.

(A JOÃO CAVALLEIRO, CASTELHANO).

Devoto João Cavalleiro,

Que pareceis Isaïas,

Dae-me de beber tres dias,

E far-vos-hei meu herdeiro.

Não tenho filhas nem filhos,

Senão canadas e quartilhos;

Tenho enxoval de guarda,

Se herdardes Maria Parda,

Sereis fóra d'empecilhos.

JOÃO CAVALLEIRO

Amiga, dicen por villa

Un ejemplo de Pelayo,

Que una cosa piensa el bayo

Y otra quien lo ensilla.

Pagad, si quereis beber;

Porque debeis de saber

Que quien su yegua mal pea,

Aunque nunca mas la vea,

Èl se la quiso perder,

(VAI-SE A BRANCA LEDA).

Branca mana, que fazedes?

Meu amor, Deos vos ajude;

Que estou no ataude,

Se me vós não accorredes.

Fiade-me ora tres meias,

Que ando por casas alheias

Com esta sêde tão viva,

Que ja não acho cativa

Gota de sangue nas veias.

BRANCA LEDA

Olhade, mulher de bem,

Dizem qu'em tempo de figos

Não ha hi nenhuns amigos,

Nem os busque então ninguem.

E diz o exemplo dioso,

Que bem passa de guloso

O que come o que não tem.

Muita agua ha em Boratem

E no poço do tinhoso.

(VAI-SE A JOÃO DO LUMIAR)

Senhor João do Lumiar,

Lume da minha cegueira,

Esta era a verde pereira

Em que vos eu via estar.

Fiae-me um gentar de vinho,

E pagar-vos-hei em linho,

Que ja minha lã não presta:

Tenho mandada hua besta

Por elle a antre Douro e Minho.

JOÃO DO LUMIAR

Exemplo de mulher honrada,

Que nos ninhos d'ora a hum anno

Não ha passaros oganno.

I-vos, que sois aviada.

Emquanto isto assi dura,

Matae com agua a seccura,

Ou ide a outrem enganar,

Que eu não m'hei de fiar

De mula com matadura.

(INDO PERA CASA DE MARTIN ALHO, VAI DIZENDO):

Amara aqui hei d'estalar

Nesta manta emburilhada:

Oh! Maria Parda coitada,

Que não tens já que mijar!

Eu não sei que mal foi este,

Peor cem vezes que a peste,

Que quando era o trão e o tramo,

Andava eu de ramo em ramo

Não quero deste, mas deste.

(DIZ A MARTIN ALHO):

Martim Alho, amigo meu

Martim Alho meu amigo,

Tão secco trago o embigo

Como nariz de Judeu.

De sêde não sei que faça:

Ou fiado ou de graça,

Mano, soccorrede-me ora,

Que trago ja os olhos fóra

Como rala da negaça.

MARTIM ALHO

Diz hum verso acostumado:

Quem quer fogo busque a lenha;

E mais seu dono d'acenha

Appella de dar fiado.

Vós quereis, dona, folgar,

E mandais-me a mim fiar?

Pois diz outro exemplo antigo,

Quem quizer comer comigo

Traga em que se assentar.

(VAI-SE À FALULA).

Amor meu, mana Falula,

Minha gloria e meu deleite,

Emprestae-me do azeite,

Que se me sécca a matula.

Até que haja dinheiro,

Fiae, que pouco requeiro,

Duas canadas bem puras,

Por não ficar ás escuras,

Que se m'arde o candieiro.

FALULA

Diz Nabucodonosor

No sideraque e miseraque,

Aquelle que dá gran traque

Atravesse-o no salvanor.

E diz mais, quem muito pede,

Mana minha, muito fede.

Sete mil custou a pipa;

Se quereis fartar a tripa,

Pagae, que a vinte se mede.

MARIA PARDA

Raivou tanto sideraque

E tanta zarzagania,

Vou-me a morrer de sequia

Em cima d'hum almadraque.

E ante de meu finamento,

Ordeno meu testamento

Desta maneira seguinte,

Na triste era de vinte

E dous desde o nacimento.

TESTAMENTO

A minha alma encommendo

A Noé e a outrem não,

E meu corpo enterrarão

Onde estão sempre bebendo.

Leixo por minha herdeira

E tambem testamenteira,

Lianor Mendes d'Arruda,

Que vendeo como sesuda,

Por beber, at'á peneira.

Item mais mando levar

Por tochas cepas de vinha,

E hua borracha minha

Com que me hajão d'encensar,

Porque teve malvasia.

Encensem-me assi vazia,

Pois tambem eu assi vou;

E a sêde que me matou,

Venha pola cleresia.

Levar-me-hão em hum andor

De dia, ás horas certas

Que estão as portas abertas

Das tavernas per hu for.

E irei, pois mais não pude,

N'hum quarto por ataude,

Que não tivesse agua pé:

O sovenite a Noé

Cantem sempre a meude.

Diante irão mui sem pejo

Trinta e seis odres vazios,

Que despejei nestes frios,

Sem nunca matar desejo.

Não digão missas rezadas,

Todas sejão bem cantadas

Em Framengo e Allemão,

Porque estes me levarão

Ás vinhas mais carregadas.

Item dirão per dó meu

Quatro ou cinco ou dez trintairos,

Cantados per taes vigairos,

Que não bebão menos qu'eu.

Sejão destes tres d'Almada,

E cinco daqui da Sé,

Que são filhos de Noé,

A que som encommendada.

Venha todo o sacerdote

A este meu enterramento,

Que tiver tão bom alento

Como eu tive ca de cote.

Os de Abrantes e Punhete,

D'Arruda e d'Alcouchete,

D'Alhos-Vedros e Barreiro,

Me venhão ca sem dinheiro

Até cento e vinte e sete.

Item mando vestir logo

O frade allemão vermelho

Daquelle meu manto velho

Que tem buracos de fogo.

Item mais, mais mando dar

A quem se bem embebedar

No dia em que eu morrer,

Quanto movel hi houver

E quanta raiz se achar.

Item mando agasalhar

Das orphans estas nó mais

As que por beber dos paes

Ficão proves por casar.

Ás quaes darão por maridos

Barqueiros bem recozidos

Em vinhos de mui bôs cheiros;

Ou busquem taes escudeiros,

Que bebão coma perdidos.

Item mais me cumprirão

As seguintes romarias,

Com muitas ave-marias.

E não curem de Monção.

Vão por mim á Sancta Orada

D'Atouguia e d'Abrigada,

E a Curageira sancta,

Que me derão na garganta

Saude a peste passada.

Item mais me prometti

Nua á pedra da estrema,

Quando eu tive a postema

No beiço de baixo aqui.

E porque gran gloria senta,

Lancem-me muita agua benta

Nas vinhas de Caparica,

Onde meu desejo fica

E se vai a ferramenta.

Item me levarão mais

Hum gran cirio pascoal

Ao glorioso Seixal

Senhor dos outros Seixaes;

Sete missas me dirão

E os caliz encherão,

Não me digão missa sêcca;

Porque a dor da enchaqueca

Me fez esta devação.

Item mais mando fazer

Hum espaçoso esprital,

Que quem vier de Madrigal

Tenha onde se acolher.

E do termo d'Alcobaça

Quem vier dem-lhe em que jaça:

E dos termos de Leirea

Dem-lhe pão, vinho e candea,

E cama, tudo de graça.

Os d'Obidos e Santarem,

Se aqui pedirem pousada,

Dem-lhes de tanta pancada

Como de maos vinhos tem.

Homem d'Entre Douro e Minho

Não lhe darão pão nem vinho;

E quem de riba d'Avia for

Fazê-lhe por meu amor

Como se fosse vizinho.

Assi que por me salvar

Fiz este meu testamento,

Com mais siso e entendimento

Que nunca me sei estar.

Chorae todos meu perigo,

Não levo o vinho que digo,

Qu'eu chamava das estrellas,

Agora m'irei par'ellas

Com grande sêde comigo.

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Produced by Pedro Saborano. Para comentários à transcrição

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GIL VICENTE
Enviado por PROF MOREYRA em 13/10/2011
Reeditado em 18/10/2011
Código do texto: T3273926
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