Esta é a forma fêmea,
dela dos pés à cabeça emana um halo divino,
ela chama com ardente atração irrecusável,
sou absorvido por seu respirar como se não fosse mais
do que um vapor indefeso, tudo fica de lado
a não ser ela e eu,
os livros, a arte, a religião, o tempo, a terra sólida
e visível,

e o que do céu se esperava e do inferno se temia,
tudo se acaba,
estranhos filamentos, incontroláveis renovos
aparecem fora dela,
e a ação correspondente também incontrolável,
cabelo, peito, quadris, curvatura de pernas,
mãos displicentes

caindo todas difusas, difusas também as minhas,
maré de influxo e influxo de maré, carne de amor inturgescendo e a doer deliciosamente,
inexauríveis jatos límpidos de amor quentes e enormes,
geléia de amor trêmula, alucinado sopro
e sumo delirante,

noite de amor de noivo certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia de carne doce e envolvente.
Eis o núcleo - depois vem a criança nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher,
eis o banho de origem, a emergência do pequeno
e do grande,
e a saída outra vez.
 
 
Não vos vexeis, mulheres: em vosso privilégio
tendes fechados
os outros e está a passagem dos outros,
vós sois os portões do corpo e sois os portões da alma.
A fêmea tem todas as qualidades e as tempera,
está no seu lugar e move-se com perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
passiva e ativa ao mesmo tempo,
é para conceber filhas bem como filhos
e filhos bem como filhas.
 
 
Assim como eu vejo minha alma refletida na Natureza,
como vejo através de um nevoeiro, Uma de inexprimível
plenitude, sanidade, beleza,
vejo de cabeça baixa e de braços dobrados sobre o peito -
a Fêmea eu vejo.
O macho não é mais nem menos do que a alma,
ele também está no seu lugar,
ele também é todo qualidades, é ação e força,
o fluxo do universo conhecido nele se encontra,
o desdém fica-lhe bem, ficam-lhe bem os apetites
e a ousadia,

as mais fundas paixões, o maior entusiasmo
e a tristeza maior, ficam-lhe bem, o orgulho é para ele,
orgulho de homem, elevado ao máximo é calmante
e excelente para a alma,
fica-lhe bem o conhecimento, ele sempre o aprecia,
tudo ele chama à própria experiência,
qualquer que seja o valor, quaisquer que sejam o mar
e o vento, no fim é aqui que ele faz as sondagens.
(Onde mais lança ele a sua sonda, senão aqui?)
Sagrado é o corpo do homem, como é sagrado
o corpo da mulher,
sagrado não importa de quem seja - é o mais humilde numa turma de trabalhadores?
É um dos imigrantes de face turva apenas desembarcados no cais?
São todos daqui ou de qualquer parte, da mesma forma
Que os bem colocados da mesma forma que vós,
cada um tem na procissão o lugar dele ou dela.
 
 
(E tudo uma procissão,
o universo é uma procissão de movimento medido
e perfeito.)

Sabeis tanto de vós mesmos para chamardes ignorante
ao mais humilde?
Julgai-vos com direito a uma boa visão, e ele ou ela
sem direito a visão alguma?
Imaginais que a matéria se fez coesa do caos
em que flutuava,

e o solo veio para a superfície, e as águas correm
e brotam as plantas, para vós só, para ele e ela nada?
Em leilão um corpo de homem
(antes da guerra vou amiúde ao mercado de escravos
e assisto a venda)
e ajudo ao leiloeiro, o descuidado não sabe
o seu negócio nem pela metade.


 
Senhores olhem esta maravilha,
quaisquer que sejam os lanços dos lançadores
jamais serão bastante altos para isto,
para isto o globo levou quintilhões de anos em preparos
sem animal ou planta,
para isto os ciclos evolutivos desenrolaram-se de fato
e com firmeza.

 
 
Esta cabeça o cérebro capaz de tudo,
nela e abaixo dela a argamassa dos herois.
Examinai estas pernas, vermelhas, pretas ou brancas,
trabalhadas em nervos e tendões,
deviam estar abertas para que as pudésseis ver.
Sentidos os mais finos, olhos acesos de vida,
energia, vontade,

músculo do peito em flocos, pescoço e espinha flexíveis,
carne não flácida, pernas e braços de justo tamanho,
mais maravilhas lá dentro.
Lá dentro corre o sangue,
mesmo sangue antigo, o mesmo sangue em seu curso
vermelho!
 
 
Se alguma coisa é sagrada o corpo humano é sagrado,
e a glória e doçura de um ser humano é o dom
da humanidade incorrompida,
e assim no homem como na mulher um corpo limpo,
forte, de boa fibra, é mais bonito
do que o mais bonito rosto.

Ali pulsa e bombeia um coração, ali todas as paixões, desejos, conquistas, aspirações.
(Imaginais que não estão ali, porque não são exibidas
Em parlatórios e salas de aula?)
Isto não é unicamente um homem, é um pai de outros
que a seu turno serão pais,
nele reside o princípio de populosos estados
e faustosas repúblicas,
ele encerra imortais vidas sem conta
com incontáveis encarnações e deleites.
Como sabeis quem surgirá do rebento do seu rebento
atravessando os séculos?
(De quem vós mesmos descobriríeis que vindes,
se pudésseis
seguir o vosso rastro
pelos séculos passados?)



Um corpo de mulher posto em leilão:
ela também não é somente ela, é a pródiga mãe de mães,
é a portadora daqueles que hão de crescer
e dar parceiros
para as mães.
Alguma vez amastes o corpo de uma mulher?
Alguma vez amastes o corpo de um homem?
Não percebeis que são exatamente os mesmos
para todos e
m todas as épocas e nações em toda a terra?
Vistes o doido que estragou seu próprio corpo em vida?
e a doida que estragou seu próprio corpo em vida?
Pois eles não se escondem,
nem a si mesmos 
podem esconder.
 

                                                    (tradução de Geir Campos)


 
 
                        ***  ***  ***  ***

        Whitman,  Walt.  Folhas de Relva.  Seleção 
          e tradução de Geir Campos.  Ilustrações de 
          Darcy Penteado.  Ed. Civilização Brasileira. 
          Rio de Janeiro, 1964.  




Walt Whitman (EUA)
Enviado por Helena Carolina de Souza em 28/10/2011
Reeditado em 28/10/2011
Código do texto: T3303109