Ébrios e Cegos

              Fim de tarde sombria.
     Torvo e pressago todo o céu nevoento.
              Densamente chovia.
     Na estrada o lodo e pelo espaço o vento.
      
             Monótonos gemidos
     Do vento, mornos, lânguidos, sensíveis:
              Plangentes ais perdidos
     De solitários seres invisíveis...
      
              Dois secretos mendigos
     Vinham, bambos, os dois, de braço dado,
              Como estranhos amigos
     Que se houvessem nos tempos encontrado.
      
              Parecia que a bruma
     Crepuscular os envolvia, absortos
              Numa visão, nalguma
     Visão fatal de vivos ou de mortos.
      
              E de ambos o andar lasso
     Tinha talvez algum sonambulismo,
              Como através do espaço
     Duas sombras volteando num abismo.
      
              Era tateante, vago
     De ambos o andar, aquele andar tateante
              De ondulação de lago,
     Tardo, arrastado, trêmulo, oscilante.
      
              E tardo, lento, tardo,
     Mais tardo cada vez, mais vagaroso,
              No torvo aspecto pardo
     Da tarde, mais o andar era brumoso.
      
              Bamboleando no lodo,
     Como que juntos resvalando aéreos,
              Todo o mistério, todo
     Se desvendava desses dois mistérios:
      
             Ambos ébrios e cegos,
     No caos da embriaguez e da cegueira,
              Vinham cruzando pegos
     De braço dado, a sua vida inteira.
      
              Ninguém diria, entanto,
     O sentimento trágico, tremendo,
              A convulsão de pranto
     Que aquelas almas iam turvescendo.
      
              Ninguém sabia, certos,
     Quantos os desesperos mais agudos
              Dos mendigos desertos,
     Ébrios e cegos, caminhando mudos.
      
             Ninguém lembrava as ânsias
     Daqueles dois estados meio gêmeos,
              Presos nas inconstâncias
     De sofrimentos quase que boêmios.
      
              Ninguém diria nunca,
     Ébrios e cegos, todos dois tateando,
             A que atroz espelunca
     Tinham, sem vista, ido beber, bambeando.
       
              Que negro álcool profundo
     Turvou-lhes a cabeça e que sudário
              Mais pesado que o mundo
     Pôs-lhes nos olhos tal horror mortuário.
      
              E em tudo, em tudo aquilo,
     Naqueles sentimentos tão estranhos.
              De tamanho sigilo,
     Como esses entes vis eram tamanhos!
      
              Que tão fundas cavernas,
     Aquelas duas dores enjaularam,
              Miseráveis e eternas
     Nos horríveis destinos que as geraram.
       
              Que medonho mar largo,
     Sem lei, sem rumo, sem visão, sem norte,
              Que absurdo tédio amargo
     De almas que apostam duelar com a morte!
      
              Nas suas naturezas,
     Entre si tão opostas, tão diversas,
              Monstruosas grandezas
     Medravam, já unidas, já dispersas.
      
              Onde a noite acabava
     Da cegueira feral de atros espasmos,
              A embriaguez começava
     Rasgada de ridículos sarcasmos.
      
              E bêbadas, sem vista,
     Na mais que trovejante tempestade,
              Caminhando a conquista
     Do desdém das esmolas sem piedade,
      
              Lá iam, juntas, bambas,
     -- acorrentadas convulsões atrozes --,
              Ambas as vidas, ambas
     Já meio alucinadas e ferozes.
      
              E entre a chuva e entre a lama
     E soluços e lágrimas secretas,
              Presas na mesma trama,
     Turvas, flutuavam, trêmulas, inquietas.
      
              Mas ah! torpe matéria!
     Se as atritassem, como pedras brutas,
              Que chispas de miséria
     Romperiam de tais almas corruptas!
      
              Tão grande, tanta treva,
     Tão terrível, tão trágica, tão triste,
              Os sentidos subleva,
     Cava outro horror, fora do horror que existe.
      
              Pois do sinistro sonho
     Da embriaguez e da cegueira enorme,
              Erguia-se, medonho,
     Da loucura o fantasma desconforme.

                                     (de “Faróis”)
 

Créditos:
www.biblio.com.br/

www.bibvirt.futuro.usp.br   

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João da Cruz e Sousa (Brasil)
Enviado por Helena Carolina de Souza em 27/11/2011
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