De corde non ex ore tantum
            Ignem veni mittere in terram, et quid volo, nisi accendatur?
                          ( o)O(o LADY NOTURNA o)O(o )


- Viste, noite! Enganas-te!
Não vês uma sombra apenas
desenhada em minha paisagem.
Fez-se a sinfonia,
vinda de seus nervos que mais pareciam
cordas vibrantes de uma harpa aflita!
Como um vampiro, em meu pescoço,
sugou minha vida
ao mesmo tempo que, em meu ventre,
foste como água em meio à terra!
Engula tuas agulhas, cravadas em tua língua,
ele tomou forma!
Eu estive envolta pela bruta criatura.
Sorveu-me, como o lobo sorve a água,
ainda que exausto no tempo que lhe restava,
encharcando a boca com a imagem da lua.

Crua, fui o sol sobre seu corpo,
enquanto ele sussurrava: _ Ah, minha vida!
Estilhaça e leva contigo tuas mentiras, noite!
Pois ele é um rei que me visita!

Antes que eu me dissolva em sangue,
respira de minha boca toda esperança,
toma-me agora, poeta,
olhe-me de novo...
e de novo
e de novo!

Antes, tua carne cinza
era uma mortalha pesada sobre teus ossos,
agora existe uma flor noturna à tua espera
depois de tuas lidas...

Cale todos meus reclames com tua boca,
construa suas formas sobre meu corpo,
eu me encaixo submissa aos teus castigos,
quando me invades e invocas sobre os céus da cama.

Peito que colado ao meu dorso,
largo e forte sobre mim
vai ganhando terreno,
homem antes desabitado de carícias,
machuca-me numa ânisa pelo teu gozo.

E a forma rude faz-se líquida,
onde toda minha natureza
parece ter vindo das trevas!
                                                  
(Lady)
                                               


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     Comentário do Jô:
     Texto não só polissêmico, plurissignificativo, mas polifônico, isto é, contendo várias vozes dirigidas a diferentes interlocutários.

     Na primeira estrofe, a autora invectiva a noite, que parecia não acreditar na sua capacidade de sedução:
          Viste, noite! Enganas-te!
          Não vês uma sombra apenas
          desenhada em minha paisagem.
          Fez-se a sinfonia, 
          vinda de seus nervos que mais pareciam
          cordas vibrantes de uma harpa aflita!
 
 
Na segunda estrofe, dirige-se ao amado:
          Como um vampiro, em meu pescoço,
          sugaste minha vida
          ao mesmo tempo que, em meu ventre,
          foste como água em meio à terra!
 
 
E novamente, já na terceira estrofe, apostrofando  a noite:
          Engole tuas agulhas, cravadas em tua língua,
          ele tomou forma!
          Eu estive envolta pela bruta criatura.
          Sorveu-me, como o lobo sorve a água,
          ainda que exausto no tempo que lhe restava,
          encharcando a boca com a imagem da lua.
 
          Crua, fui o sol sob seu corpo,
          enquanto ele sussurrava:  --- Ah, minha vida!
          Estilhaça e leva contigo tuas mentiras, noite!
          Pois ele é um rei que me visita!
 
 
Agora, já na quinta, sexta e sétima estrofes, ela se dirige ao ser que a conquistou, suplicando:
          Antes que eu me dissolva em sangue,
          respira de minha boca toda a esperança, 
          toma-me agora, poeta, 
          olha-me de novo...
          e de novo
          e de novo!
 
          Antes, tua carne cinza
          era uma mortalha pesada sobre teus ossos,
          agora existe uma flor noturna à tua espera
          depois de tuas lidas...
 
          Cala todos os meus reclames com tua boca,
          constroi tuas formas sobre meu corpo,
          eu me encaixo submissa aos teus castigos, 
          quando me invades e invocas 
          sob os céus da cama.
 
 
E então se dirige ela a um possível leitor, ou mesmo a si, na oitava e nona estrofes, monologando:
          Peito colado ao meu dorso,
          largo e forte sobre mim
          vai ganhando terreno,
          homem antes desabitado de carícias,
          machuca-me numa ânsia pelo seu gozo.
 
          E a forma rude fez-se líquida,
          onde toda a minha natureza
          parece ter vindo das trevas!
                                              
 
     A escritora, talvez sem o perceber, deu corpo neste poema à sua doutrina wiccanna, ao seu satanismo, ao seu culto do deus do Mal que dominará a Terra nos últimos dias. 
     Fascinada e endeusando o ser que a possui todas as noites, e que a princípio era visto com temor, visualiza enfim esse ente no comando dela e dos outros humanos. 
     Após a leitura desse pesadelo, pelo medo das chamas do Inferno, fazemos uma mea culpa, consertamos os nossos atos, procurando nos pautar pela bondade e a justiça, tentando conseguir assim o perdão de Deus e um lugar no Paraíso. 
     Falo como ateu que ficou aturdido pelo poder estupendo de tão redentora mensagem.
     Este poema equivale a uma semana de pesadelos, tal a sua conotação com a “A Bela e a Fera” - bela e fera num sentido muito mais íntimo e aterrador que o singelo filme.  Talvez me expresse melhor: poema um tanto profético, apocalíptico, final dos tempos em fogo e dor universal. 
     Um verso levita, extremamente encantador, flor dos reinos sobre a Terra: 
          "Pois ele é um rei que me visita!"
 
     Estou lendo "Antologia Poética", de Carlos Drummond, organizada pelo próprio.  Por tudo que já li dele, mais esta antologia, inclino-me a apontá-lo como o maior poeta brasileiro de todos os tempos, quase comparável a Camões e Pessoa. Falta ler muita gente e muita obra, claro. 
     Mas aonde quero chegar: teus poemas possuem uma robustez tão poderosa que ousarei aproximá-la dele.  Dele e de Cecília Meireles, para não avançar muito em terrenos desconhecidos.

 

                                   ***   ***   ***

 
     Tradução das expressões latinas:
Ignem veni mittere in terram, et quid volo, nisi accendatur?
(Eu vim trazer fogo à terra, e que quero eu, senão que ele se acenda?)
 
Sincere, id est, de corde, non ex ore tantum.
(Com sinceridade, isto é, do coração, não apenas da boca) 

 


     Fonte: 
     "Dicionário de Expressões e Frases Latinas",
      de Henerik Kocher
.

      (www.hkocher.info/dicionario/)





Enviado por Jô do Recanto das Letras em 03/03/2012
Reeditado em 04/11/2012
Código do texto: T3532045
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