Desfeito

Respiro os últimos espaços de ar.

Respiro pedaços de vento.

As ruas caminham sob meus pés;

em vão, meu corpo afronta o tempo: avança. Pára. Recua.

Minhas pernas bailam um tango arrevesado.

Confundo os pés com as mãos e vou.

Sigo em frente rechaçando teorias.

Tropeço em uma palavra não dita: maldita.

As ruas terminam em “T”,

dobram-se em “L”,

cruzam-se em “X”.

Penso que letra sou(fui?) eu...

Os nomes não existem; existe apenas o som.

Todo chamamento é música.

Não há resposta em silêncio.

O sol atravessa meus olhos, esconde-se em mim.

Invadida de luz, minha cabeça levita em delírio.

Respondo perguntas não perguntadas, aprisiono imagens.

Corro à frente do meu corpo para espreitá-lo na curva. Ele não chega.

Sinto-me perdido e liberto, estranhamente impessoal.

A cidade agora é um mar:

ressoam gritos de afogados, passos de peixes.

A sombra separa o mundo em dois mundos, engole os indecisos.

Subsisto em uma espera que se alonga em séculos e segundos.

Sinto nostalgia por algo que não conheci: a isso chamariam não-saudade.

Em um mapa desenhado de veias, desliza um líquido que não é sangue.

Rio de uma desgraça qualquer, não importa: somos todos idiotas.

Persigo pássaros que voam em câmera lenta, covardes.

Os absurdos tornam-se verdades; as verdades, lendas.

Respiro outro intervalo de ar, o derradeiro.

Dou o último passo e o primeiro.

Cheguei ao fim e ao início: as coisas não mudam. Mudam as bandeiras.

Por fim, reencontro meu corpo. Ignoro. Ele disfarça.

Já somos dois, um ausente do outro.

A própria certeza é incerta; inevitável é a dúvida.

Atravesso a fronteira invisível que me divide os pensamentos.

Eles, antes de mim, sentem-se livres.