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Quem ficará com a camisa do finado? E seus velhos

Sapatos, gastos de um lado apenas? E seus óculos

Com pernas escambetadas? Alguém há de querer

Este par de meias, visto que só as calçou umas duas

Vezes: na missa de sétimo dia do compadre João

E na formatura da primeira neta.

Possivelmente haverá quem queira a cadeira

De balanço na primeira sala diante da televisão,

Onde ele, já senil, cumprimentava todas as noites

A moça do telejornal. O caneco desbeiçado

No qual bebia água, molhando os cantos da boca

E até a blusa, quem o levará? Já não terá sede

No mundo para o qual definitivamente se foi.

Pensava sempre em viajar. E dizia-o. Queria

Conhecer o frio de Porto Alegre, as cataratas

Do Iguaçu, a coisa mais linda deste mundo.

E visitar Fidel em Cuba. Estava planejando reformar

A casa, esta casa velha e abandonada. Mas agora

Nada mais será feito, nenhum cimento será gasto.

O corpo do velho está sepultado em sua última

E inexorável moradia, ao lado da tão amada esposa

Que o deixara alguns meses antes. Quem ficará

Com os sorrisos dele, espalhados por toda a casa?

E quem, com as preocupações e tristezas, que,

Algumas vezes, encobriam o seu olhar?

Quem estará disposto, finalmente, a guardá-lo sem

Qualquer senão, numa casinha bem iluminada

Nas vielas do coração?