Meu filho não deu em nada

o pai quase todo dia se lamentava:

meu filho não prestou para nada

não prestou para futebol judô coisas de macho

não prestou para advogado médico engenheiro administrador

– para nada

nem para casar com moça rica

nem para arrumar boca na política

meu filho é um fracassado – dizia

trabalha numa loja onde só vão vagabundos e maconheiros

para beber fumar e conversar borracha

ler poesias contos peças de teatro

– essa merda toda

que não leva a lugar nenhum

vendem lá discos de vinil

(onde já se viu!)

livros estranhos esculturas enfeites com penas

– coisas de boiola

e por trás do balcão a maldita erva

tenho certeza

e são todos cheios de tatuagens

dos pés à cabeça

meu filho um dia me mostrou as dele:

erva do diabo dragão calango águia

coisa horrível

meu filho não deu em nada

– NADA

essa era a ladainha do pai para os amigos da fábrica de parafusos e roscas

onde ele era diretor financeiro

e todos concordavam:

não deu em nada mesmo – diziam

mas o filho não pensava assim

esse nada

para ele

era tudo que ele sempre quis ser

o pai não sabia

mas ele não fumava maconha

nem cigarro careta

só bebia três taças de vinho por final de semana

e trabalhava muito naquilo que amava:

livros poesias contos peças de teatro esculturas enfeites

tinha uma namorada

e dinheiro suficiente para comprar uma casa do jeitinho que eles queriam

e para a viagem que planejavam

(talvez sem volta):

Amsterdam...

não dar em nada é só uma opinião

uma visão

um ponto de vista

– só

para o filho

esse

nada

era

tudo

que

ele

sempre

quis

ser

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 15/03/2014
Reeditado em 18/03/2014
Código do texto: T4730046
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