INFÂNCIA

Olho para este corpo do alto escarpado da montanha homicida,

a cada instante mais próximo de seu cume,

e vejo um menino.

Não há como retroceder o corpo frágil,

precariamente aderido ao penhasco belicoso.

Ainda sou um menino.

Olhos empapuçados, cabelos parcos, pele repleta de rugas,

mãos manchadas, veias entumecidas e a barriga invencível,

mas ainda sou um menino,

lambuzado de inquietação, repleto de perebas e de todos os sentidos.

Ninguém deve saber desse meu mimetismo pueril.

Somente meus amigos de infância sabem,

mas estão muito longe agora para poderem me dedurar.

Minha mãe bate com sandália de dedo

ou me puxa aos beliscões até o lugar do castigo,

ao lado da cama, de joelhos e olhando para o pequeno quadro,

Jesus com o coração coroado de espinhos para fora do peito e as mãos furadas.

Meus braços arroxeados se resignam.

- Desliga o rádio que no fim da tarde é triste.

Se ouvir Teixeirinha eu choro,

a mãe dele morreu queimada na casa que pegou fogo.

Tenho dó do Teixeirinha.

Saio do castigo e vou brincar escondido,

jogar bola de meia no corredor rente ao muro,

evitando chutar a bola no portão de ferro dedo-duro.

Matei aula para jogar finca e bolas de gude.

A professora fez um bilhete para os meus pais.

Ela descobriu minha assinatura.

Fiquei de castigo depois da aula.

O diretor passou duzentas linhas.

"Não vou mais enganar a professora e os meus pais."

Apanhei do meu pai.

Ele me levanta pelo pescoço e me bate de cinto.

Minha mão doeu mais, por vários dias, por causa das duzentas linhas.

Ganhei um casal de preás.

Ando nos terrenos baldios e corto capim para eles.

Um dia ainda pego aquele periquito que me desafia do telhado do vizinho.

Vou fazer um visgo de jaqueira num pedaço de arame

e por em cima do muro junto com uma fatia de mamão.

Vou fazer um estilingue com forquilha de goiabeira.

Um dia pesquei piabas no córrego da matinha.

Peguei escondido a peneira lá na cozinha.

Ia criar eles na bacia debaixo do tanque,

mas minha mãe precisou dela para quarar a roupa.

A terra do quintal cintilava de piabas saltando.

O gato comeu uma a uma. Minha mãe ria lá do varal.

Nas férias de julho troquei meu carrinho de rolemã numa pipa colorida,

mas quebrei a taboca. Meu pai ficou triste comigo.

Roubaram minha bola de cobertão e meu pai bateu no engraxate.

Tenho dó do engraxate. Tenho dó do meu pai que ficou triste comigo.

Encho a boca de chiclete, mastigo

e faço bola até ela estourar na minhas sobrancelhas.

Bebo Grapete e minha língua fica roxa.

Bebo Crush e minha língua fica laranja.

Chupo picolé de groselha até minha língua ficar dormente, anestesiada, sangrar.

No recreio vou comer maria-mole, puxa-puxa e quebra-queixo.

Minha mãe não deu dinheiro para merenda hoje.

Dentro da minha pasta de courvin, só pão com manteiga e mel.

Minha pasta é a mais feia da sala, a minha e a do Mário.

A mãe dele toma conta da cantina.

Certa vez passei a mão na bunda do Mário e a professora não viu.

Ele é o mais bravo da sala. Todos rira. Tomei um soco no nariz.

Meus óculos quebraram no meio. O Mário não falou nada. Ele era calado.

Foi parar na sala do diretor e levou três dias de suspensão.

O diretor fez a mãe dele comprar outro óculos e dar para minha mãe.

Tenho dó do Mário e da mãe dele.

Na hora do almoço tinha Biotônico Fontoura, mas é só tampar o nariz.

Emulsão de Scotch é pior, não adianta tampar.

Faz vômito de qualquer jeito. Tomo beliscão.

Mas ainda é melhor que tomar Bezentacil.

Não adianta dar o braço. Só pode na bunda.

É o doutor Fausto quem aplica com seringa de vidro da agulha grossa.

Fumo cigarro escondido. Não é o de chocolate não,

é de verdade, e compro bombinha de mil.

No bolso umas moedas, o troco da padaria, no álbum de figurinhas.

Uma vez quase completei um.

Plantei um pé de feijão na lata de Parquetina.

Punha água todo dia, mas Lucinha e Iris arrancaram todas as folhas.

Peguei um filhote de sabiá que caiu do ninho e pus debaixo da bacia virada.

Um tijolo em cima para o gato não pegar.

Eu ia criar o passarinho, mas ele morreu de frio.

Tenho dó do pé de feijão e do filhote de sabiá.

No Natal vou ganhar uma Monark Tigrão.

Ou no meu aniversário.

Escrevo palavrões tortos no final do caderno de caligrafia.

Xingo a professora e o diretor.

Escrevo a lápis depois apago e escrevo versos em cima.

Mesmo depois de apagar os palavrões fica a marca.

"Melhor é perdoar que ser perdoado". O verso estava na lousa.

Só perdôo a senhora da cantina. A mãe do Mário. Só.

Uma vez ela me deu um suspiro.

Ninguém me perdoaria por passar a mão na bunda do Mário,

por quebrar a taboca da arraia e deixar meu pai triste.

nem o Jesus com o coração para fora coroado de espinhos e as mãos furadas.

De vez em quando me dá uma vontade de crescer logo.

Vou crescer e chamar minha mãezinha

lá do alto da encosta escarpada

- Ah, minha mãezinha, não faço mais arte não!

Me pega nos braços e me põe no colo, mãezinha,

que eu preciso tanto.

Asael Souza
Enviado por Asael Souza em 06/09/2014
Código do texto: T4951466
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.