Queria ser invisível

Queria ser invisível e cruzar a rua

Sair de casa sem que ninguém desse por conta

Comer o bolo de chocolate da vitrine da padaria

Dar um beijo de estalinho na vó dormindo na sala.

Ela ia achar que foi um anjinho...

Queria ser invisível e cortar os cabelos da boneca cara que meu tio me deu no natal

Para ficar como o meu.

Ela fica guardada em cima do guarda-roupas

Olho pra ela e queria brincar.

Meu cabelo é preto que nem a terra do quintal

Ela é loira, todos dizem que é bonita!

Queria ser invisível e às vezes cega.

Quando vou para escola

Passo numa viela suja e velha, com paredes e muros riscados e lixo

Nos cantos amontoados.

Tem gente cabisbaixa andando ensimesmada e mulheres desgrenhadas aos gritos

Com os filhos, enteados, sei lá... só gritos

Queria ser surda também, cega e invisível...

Cruzaria a rua rumo ao campinho de poeira

Lá tem uma amendoeira grande de muita sombra e o som

Do silêncio, dos lugares das crianças cansadas de correr

Da vida, aula presencial sem direito a reprovação ou segunda época

Queria ser muda e só rir!

Ser invisível como um super herói e voar

Sobre águas azuis e casas branquinhas com jardins e muitas

Muitas flores.

Minha florzinha morreu,

Seca. Causa mortis : atropelamento.

Chutada e pisada por gente grande que nem percebeu que ela estava ali

Tão quietinha e bonita dentro da lata de leite em pó.

Eu achei uma latinha boazinha, novinha!

Ah como eu queria ser invisível e dar uma canelada

Em quem chutou minha florzinha!

Mas o tempo é invisível , a gente nem vê quando ele se vai

Então eu acabei por esquecer a florzinha!

Acho que também fui murchando,

como ela.