Sonho recorrente ou seis passos para um poema surrealista

Assim se sucedeu naquele sonho:

era noite quando uma jovem moça

perguntava-me as horas. Eu lhe disse:

“Não sei não, senhorita, mas é tarde;

não há ninguém na rua, não há nada”.

Ela, então, deu um tiro na cabeça.

Era noite de novo; na cabeça

a sensação de estar vivendo um sonho

como se caminhasse sobre o nada.

Chegou-se a mim aquela jovem moça:

“Morri, ressuscitei; é muito tarde.

Mate-me agora mesmo!”, ela me disse.

Era de noite quando alguém me disse:

“Veja só, estourei minha cabeça

e não posso emendá-la, pois é tarde!”,

e tudo se passava como num sonho.

Diante de mim, aquela jovem moça

estava morta; não dizia nada.

De noite outra vez, não se via nada.

Do escuro, soou uma voz que disse:

“Não se esqueça daquela jovem moça

que levou um balaço na cabeça!”.

Lembrei-me vagamente de algum sonho,

mas não pude retê-lo. Era tarde.

De noite. Muito escuro. Muito tarde.

Já não me lembro mais de quase nada

e vejo as coisas turvas, feito um sonho.

Só sei que certa vez alguém me disse:

“Cuidado! Não atire na cabeça!”.

No chão, jaz o cadáver de uma moça.

Percebo-me: sou uma jovem moça

andando por aí — tarde, bem tarde.

Estou morta e não tenho mais cabeça;

nas mãos, trago um revólver e mais nada.

“Não há ninguém na rua”, alguém me disse.

Não sei se sou real nem sei se sonho.

É sempre o mesmo sonho, a mesma moça,

algo que alguém me disse muito tarde,

um tiro e só. Mais nada na cabeça.

In: "Pavão bizarro" (2014)