Naufrágio no Mar Morto
NAUFRÁGIO NO MAR MORTO
Se esse relógio no pulso
não pesasse tanto,
eu teria tempo
para estar atrasado.
Eu não perderia tempo
fazendo coisas as quais
eu não sei o porquê de fazê-las.
Se eu quebrasse esse grilhão,
não andaria distraído pelas ruas
caóticas, e seria consciente de
que a cada segundo morre
uma parte exausta de mim.
Eu não fecharia os olhos,
nem permanceria parado
em frente ao espelho,
à espera de um abraço.
Não, essa frustração
não me alcançaria.
Eu me sentaria em colinas
livres do concreto e de homens concretos
e, ociosamente, assistiria ao espetáculo
da vida em sua essência.
Observaria os passarinhos.
E, despreocupadamente, diria ao mundo
que meu ritmo é muito além
do que alguns chamariam de básico.
Livrar-me-ia de certos finais trágicos.
Finais certos,
previsíveis, programáveis.
Se eu não sentisse essa obrigação de viver,
acharia uma maneira menos complexa,
menos decepcionante, menos superficial,
de relacionar-me comigo mesmo.
Não criaria expectativa sobre nada,
e entenderia o motivo do meu suor.
É, meu suor vai além
do que me disseram que iria.
O meu sangue vale menos
do que eu acreditava que valia.
O meu dia-a-dia infere
mais coisa do que a poesia.
Se eu pudesse desacelerar um pouco,
eu desistiria do carro e iria de trem
Junto com outros olhares
de pessoas estranhas – pessoas amigas.
Acontece que quando vou para o metrô,
minha espera é vã. Não existe trem.
E se alguém me disser que o mundo
não é feito de suposições,
eu iria supor que eu estivesse errado.
Aí então, o relógio continuaria a pesar,
com astuciosa harmonia,
enquanto os dias passariam,
os homens passariam,
o amor passaria,
o ódio passaria,
a poesia passaria.
Quanto tempo falta
para que não falte tempo?
Quem sabe até inventem relógio para passarinho...
Aí sim!
Tudo estaria no tempo dos homens: o tempo certo.