Paranóia século XXI segunda parte
II
Ainda não durmo, apenas me devoro. Sacrifico os olhos. Minhas pálpebras foram doadas para abrigar mendigos na estação azeda e fria.
Zuummmmmm!!!!
Um trem que passou do outro lado da cidade, debaixo da terra onde enterraram os sonhos. Ou um zummmm!!! desse inseto que abre estradas no meu cérebro.
Uma placa, um anúncio, um outdoor:
“No belo jardim das idéias preconcebidas,
Jaz um corpo-defunto
E, de sua boca, brota uma flor amarela.”
Siga em frente. Ótimos preços.
Garanta o seu!
Zummmmm!!!!
Ando na contramão de todas as idéias já pensadas. Posso morrer. Vou morrer, mesmo, daqui a oitocentos metros.
Um grande mastro onde vou ser acorrentado.
Os abutres não comerão a minha carne.
Eu sou um fluxo, uma correnteza aérea.
E vou tirar, com a ponta do sabre,
Todos os projéteis do meu corpo.
Oh, todas as armas já inventadas!
Qual delas pode disparar a esperança?
Nenhuma revolução pode existir em meu corpo,
Se meus olhos não estiverem despetrificados,
E meu coração derretido pelo ódio
Que alimenta as máquinas.
Os pistões em fúria, os anéis em chamas,
Os dentes trituradores...
A tubulação negra de fuligem.
Depois disso, só depois disso...
O suco biliar fermenta.
Logo mais um padre me dirá:
- Meu filho, quando o sino der a primeira badalada, vou te recitar um poema do Álvaro de Campos, um febril e acelerado, a fim de que tua alma possa ficar translúcida, sem as máculas dos teus crimes.
- Não, padre! – direi – Já assassinaram o amanhecer, assim que degolaram os últimos galos. O sol foi abatido antes mesmo de se pôr. Foi um tiro de escopeta que manchou o céu, de modo que não vais puxar a cordinha do sino nem recitar nada, nem pedir clemência a Deus, porque ele foi internado numa clínica para leprosos. Deus perdeu a consciência. Padre... não serei purificado a não ser pelas minhas próprias mãos, empunhando uma lança, em luta brutal com o papel.
Sem pálpebras, sem lábios, vou rilhando os dentes e esperando...