GENÉTICA DA POESIA

Para Vinicius e Márcia

I

De uma recordação? De uma saudade?

De uma tarde esquecida? De algum medo?

De algum pesadelo? De alguma conversa perdida no ar?

De algum lugar que a memória reteve?

De alguma canção cujos acordes ficaram vibrando dentro de mim?

De um poema ouvido numa noite sem lua nem estrelas?

De uma foto de meu filho diante de mim?

Da vontade de transpor essa foto e abraçá-lo, e rir com ele, e dele receber um gesto carinhoso .

De uma cena, que não sei por quê, assalta-me a lembrança?

De um beijo seu que nunca é o mesmo, mas que sempre se repete igualzinho ao primeiro?

De uma vontade de encher os espaços em branco do papel, sem saber

[exatamente por qual razão?

De uma angústia surda que me provoca uma sensação de que as palavras

[pululam no papel pedindo que eu lhes dê vida e forma?

II

De saber que sempre fui ensimesmado? Que na infância enclausurei-me nas

[redomas do silêncio, como só assim pudesse captar a palavra escrita?

De necessitar da solidão, dos brancos do papel, onde eu possa provocar este [formigueiro de consoantes e vogais, a espalhar-se neste deserto que é o papel no qual escrevo neste momento?

De transformar estes vinte e seis sinais gráficos em alguma coisa que fale a mim,

[fale a você, fale a todos?

De tentar preencher os vazios, as lacunas, os espaços brancos, que formam um

[arquipélago enorme dentro de mim?

De refazer os pequenos lances de minha infância?

De descer novamente a estradinha de acesso à chácara, numa bicicletinha

[(era um pequeno triciclo) e novamente, junto com minha irmão, ter os joelhos esfolados?

De sentir-me – como sempre – ninguém, e tentar incorrigivelmente provar que

[não sou tão péssimo assim?

De envergonhar-me de tudo e de todos? De necessitar muitas vezes tornar-me

[invisível, para cruzar determinados lugares?

De imaginar ser capaz de fixar numa espécie de fotografia a dinâmica da existência?

De desejar encontrar o papagaio que o vento levou para longe?

Estará onde? Em Piracaia? Em Nazaré Paulista? Em que galho da infância

[enroscou-se? Em que céu de criança desapareceu?

Onde nasce, se é que nasce?

Ou está dentro do sangue?

Com algum filtro destila-o?

Está na lama do sangue?

III

Impossível saber em que compartimento do cérebro

A poesia fica.

Sequer tenho certeza dessa permanência.

Sem peso, sem cor, sem medida

Em que possa eu circunscrevê-la.

Inútil trabalho tentar armar uma armadilha de palavras

E prendê-la: poesia não é, sendo.

Seu tempo é o gerúndio, um instante cavalgando sem parar. Quando

Termino de escrever , de tentar apreendê-la, estou no tempo passado. Fugiu-me,

Pois não existe o presente imóvel de onde pudesse apresá-la,

Sem ser engolido pela ampulheta das horas.

Se houvesse possibilidade de ir adiante, estar num tempo futuro...

Drummond, João Cabral, Baudelaire, Mallarmé,

Ensinem-me como tocar nos contornos da poesia!

Mostrem-me como saltar entre os espaços de silêncio das notas musicais das palavras,

No instante em que os átomos dos fonemas cingem-me em torno da cidadela dos versos.

Decifrem-me todas as sílabas escandidas, os anapestos e os troqueus que fingem ser

Palavras intactas, adormecidas no dicionário!

IV

Constelações. Os poemas são constelações invisíveis a olho nu.

Olho para este papel: vejo um céu branco que me cega.

Necessito um telescópio potente para ver as estrelas-palavras,

Que se amontoam nesse céu. São muitas, todavia escondem-se na

Brancura deste celeste espaço.

Ei-las repentinamente povoando todos os cantos.

Como? Quando? Onde?

Não sei. Não consigo esboçar uma fórmula matemática definitiva

Para explicar esse céu estrelado

Tão diverso.

Poemas são como nuvens,

De repente surgem

Sob diferentes formatos:

Cirros, estratos...

É óbvio, com outros nomes:

Sonetos, odes...