CHARRUA DO TEMPO

Sou jóia de cristal negro

escondida em noite sem lua

impossível de ser roubada;

sou caco de vidro

fragmentos espalhados

de garrafa de vinho quebrada;

sou pedra bruta de sal

que na tua boca se fará sede

impossível de ser saciada;

sou riso claro e barulhento

de quem encontrou no lixo

um bilhete de loteria premiado;

sou porta da rua

serventia de uma casa

onde ninguém mais mora;

sou soleira de pedra

gasta de tão pisada

pelo ir e vir de meus pés descalços;

sou muro antigo

recoberto de hera

estranha trama do destino;

sou ponta de pua

na madeira ferida

em véspera de virar mobília;

sou jornal de amanhã

profetizando o futuro

mas que virou embrulho de peixe na feira;

sou canto de lavadeiras

mais fascinante que o de sereias

a seduzir marujos desavisados;

sou terra arada

que geme e sangra

sob a charrua do tempo;

sou alta madrugada

desfeita em novelo sem lã

à espera do dia de ontem;

sou tudo o que calo

a dor surda de um calo

no aperto de um sapato emprestado.

- por Hans Gustav Gaus, Almirante Holandês, em diálogo com sábios da corte de Maurício de Nassau, acerca da perenidade da vida -