Alma Aflita

Oh! alma aflita, que anda a sós e sem destino,

Sem fé, sem esperança e sob ocultos passos...

Oh! alma aflita!... Ser enfermo e peregrino

Que segue a infértil Senda — os infernais Espaços...

Oh! alma aflita, que anda em vão, despercebido...

Que pela vida vive em vil Esquecimento...

Oh! alma aflita: Deus não ouve o teu pedido,

... Tu és oriundo d’um satânico Elemento!

Oh! ser da derradeira Hora — ser profano,

Que cospe a Prece negra entre um desprezo eterno!...

... Que em vão recita os mil versículos do engano

Crendo que enganará os tentáculos do Inferno!

Tu! ser que anseia pela impura e infiel Herança,

Que eleva as mãos sem fé à Cruz do condenado...

Tu! alma aflita, ser que nada e nada alcança...

Que ri da devoção e engasga no pecado...

Oh! alma indigna,... ser de maldições e vícios...

Que anseia pela vida além, num Paraíso...

Que anseia pela Luz, mas segue aos precipícios!

Oh! alma aflita, que do Azar escuta o riso...

Oh! alma aflita, que em momentos d’alva Paz,

Cultua os anjos entre as mirras e aloés...

Oh! ser que em noites de Remorso é capaz

Dê pôr as mãos na roxa Hóstia dos infiéis!

                                (oh misterioso poeta, está quase chegando a hora —

o seu grand finale

                                  leitores: é quase hora — A Anunciação.

                                  está próxima)

Oh! tu que vagas em delírio, só pecando,

Filho d’um Salmo morto — o filho foragido;

Oh! tu nasceste sob o Signo mais nefando,

... Nasceste d’um Noivado impuro e proibido!

Oh, tu! bastardo de ilegítimos Batismos,

Que a sós blasfemas entre as missas do Convento...

Oh! Sacrossanto ser de augustos Satanismos...,

Oh! ser das Comunhões d’um Deus sanguissedento!

Oh! alma aflita — o oculto Enigma que escondia —,

Que ora sem ardor e sem saber a quem!

Que roga por Perdão e afoga em heresia,

Oh! Ser que peca, que confessa e reza: “Amém!”

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a morte me persegue. me persegue não: faz de mim o seu escravo, o seu forasteiro. eu vejo o vulto nas madrugadas; ela vem a sussurrar, numa iminência violenta, penetrando a mudez da escuridão — estou vigiado. eu sinto um olhar cravado ao meu, dois faróis de sangue que assusta e comove, que asfixia num grito todo o mistério da alta noite. tenho certeza: é o demônio que entre quatro paredes amputa todos os meus sonhos, toda a minha vontade de ser. é a mística essência da maldade que me vela, perversa e soberana. é uma força intrínseca que revolta, um transe transformador que estrangula as transparências da penumbra. é a revelação; o prenúncio d’uma ferocidade fria e velada. um bode cínico, a rir de minha submissão. ela vem noite após noite numa responsabilidade delinquente. ela nos transfunde; o branco e o vermelho se plasmam em núpcias. ela recai sobre mim; um gemido que retumba — pura humilhação. ela vem sem se expor inteiramente, mas eu a desvendo. ela vem sanguinolenta, e é por medo dela que da vida eu me elimino. ela é o meu limite, o limiar de tudo: o espaço que me circunda como uma rubra e satânica auréola. ela é o eco que rasteja, a sepulcral pulsão em minhas vísceras desconhecidas. foi a morte que me trouxe a este mísero e nojento estado: a de um vira-lata, puxado por ela numa algema que corrói; a de um hipócrita, um indigno que receia a tudo e a todos. ela me captura, ela me conduz aonde quer — eu não ando, eu não me mexo; uma estátua paraplégica. sou o filho dela. ela me catequizou em sua cognição; escreve em símbolos e fala em outro dialeto: eu a compreendo — sagrada epifania! mas ela não me ensina o seu feitiço-mor, com medo de que eu me liberte por inteiro. ela zomba e me tortura, tão vil e insolente. como uma peça de xadrez ela me carrega pela vida, oscilando entre o presente e o passado, como uma praga louca indo e voltando: quando eu não quero me recordar de nada, ela me arrasta ao passado e diz! recorda recorda recorda recorda recorda recorda. quando eu quero agir ela me chuta e com suas garras me agarra as patas. e dia após dia eu vou esquivando de sua insônia, boiando na escura imensidão, respirando o ar que me resta impregnado com o perfume da malícia. eu não posso pronunciar seu nome, pois ela me condena, remoendo o pouco que resta em mim. e quando enfim eu me revolto em ousadia — quero cuspir em tua cara! — ela me dá um peteleco tão fraco e tão cru, um toque tão irrelevante que me rebaixa por completo, numa reverência imunda. essa minha incapacidade, essa minha condição de invalido me é insuportável; eu quero me livrar dela, dessa parasita que rompe os meus passos, que esmaga o meu caminho; desse bicho que eu escuto num cego deslumbramento. eu quero ser livre do que ela fez crescer em mim! pois ela me sequestra e eu fujo e novamente ela irá me raptar e mais uma vez eu sou a presa que ela mastiga e mais uma vez e novamente eu plano no ar alto e irreverente e mais uma vez ela me apunhala numa poderosa danação e novamente ela estupra a minha intimidade dedo após dedo sua voz impronunciável me ultrapassa átomo fugaz estrela cadente sob o meu território invasora eu me estendo frente a sua imagem nua e cheia de graça ela tenta me adestrar como um verme minha subversão minha negação o movimento sem-nome a passagem aberta um eterno fugitivo meu sangue pinga e pinga e pinga numa paz suicida que me afunda a sua âncora a ânfora que se reparte em cacos um chamado à liberdade à palavra inconfessável o precipício minha lava interna que me corta dilacerando o relincho nobre e putrefato que insiste em existir em mim

eu resisto.

pois sou teu filho — e você, o Pai que dia após dia tento abortar.

meu sorriso violentado, meus olhos vermelho-diabo. a minha plumagem, o meu disfarce: um triunfo! — não percebes que do teu harém eu eternamente escaparei? é esse o meu único dom, o dom que herdei de ti; o elemento que sobrevive: ser a andorinha que diariamente foge, livre e assassina.

amém!

.

. .

                                 (oh misterioso poeta, está na hora. encerra

teu poema — pronuncia enfim a tua arte mais

secreta. descostura o peito constelado,

                                  e deixa fluir o último Trauma.

                                  revela a Terceira face. anuncia o ser que

vive entre.)

pt. II: A Anunciação.

eu sou o poeta

que pela vida anda a sós e sem destino...

minh’alma anseia

pela proibida confissão

— por uma hóstia

                     pura

e fatal

pois vivo num monástico templo

entre a voz dos sete abismos

e as visões de azuis meditações...

                                 (como bem disse wenceslau de queiroz,

                                  “Pois vivo, entre o inferno e o céu voando,

                                  Com as asas de Lúcifer nos ombros!”)

numa alquimia sem igual

transformo a luz dos círios

no dourado gozo

                           de satã...

no mais silencioso ritual,

cultivo incensos que invocam o oráculo do mal.

sou tal como a serpente alada

— alva e maldosa...

é meu próprio veneno que desejo tragar.

                                 (amém!)