Teatro I

(Um homem velho sentado ao lado de um abajur velho, a ler um livro. Entra outro homem, pouco mais jovem, corpulento).

VELHO – Poderia acender a luz, por favor?

HOMEM – (acende todas as luzes) Assim está melhor?

VELHO – Muito. Dessa maneira posso ler inclusive as entrelinhas.

HOMEM – Vai ficar o dia inteiro aí, sentado?

VELHO – Sim, e preferiria fazê-lo em silêncio.

HOMEM – Isso não está funcionando.

VELHO - Está sim, ligou a luz, não ligou?

HOMEM - Não, não o interruptor.

VELHO – O que não está funcionando?

HOMEM – O texto. Ou eu. E esse sofá. É familiar, mas ao mesmo tempo... Não consigo mais acreditar no meu personagem. Não sei, tudo começou a parecer meio chinês...

VELHO – Por vezes acho que você é um péssimo ator, por isso acaba sempre com o mesmo papel, geralmente interpretando você mesmo. Devia agradecer ao diretor por ser um homem paciente.

HOMEM – O senhor que é um péssimo ator. Fica sentado na poltrona durante a peça inteira, com o livro na mão. Pensa que não sei que o senhor lê as falas?

VELHO – Qual o problema? E você também lê as falas. Esqueceu de que não compareceu aos ensaios? E quando compareceu, o fez completamente alcoolizado.

HOMEM – Ah. Lembrei do sofá.

VELHO – Você deveria pegar outros papéis. Talvez uma peça infantil.

HOMEM – Peça infantil?

VELHO – Claro. As crianças têm, em geral, pouco gosto artístico.

HOMEM – Parecem com o diretor.

VELHO – Não é culpa do diretor. É um ótimo diretor.

HOMEM – É louco. Olha essa peça. Começa com um velho sentado numa poltrona e acaba com uma crise existencial do ator coadjuvante.

VELHO – Tem um sentido filosófico em tudo isso. Não percebe?

HOMEM – Sentido filosófico meu ovo esquerdo.

VELHO – Talvez não tenha que ter nenhum sentido filosófico, e seja precisamente esse o sentido filosófico. Confesso que me escapa a intenção do roteirista. Nai-não-sei-o-quê. Nome pomposo.

HOMEM – Nai?

VELHO – Ouvi dizer que é russo.

HOMEM – Russo? Não me parece nome russo. Parece chinês.

VELHO – Sim, é russo. Talvez tenham traduzido o nome juntamente com a peça. Talvez um erro de tradução. Isso explicaria o absurdo dessa peça. Contudo, há certa tradição na Rússia, ouvi dizer que uma vertente do absurdo.

HOMEM – Mas o senhor falou que o diretor era um bom diretor. Por que é absurdo?

VELHO – O diretor é ótimo. Se tem alguém ruim, é o roteirista. Mas ainda não me decidi sobre o assunto. Nem sei se a peça é ou não absurda. Quanto ao diretor, olha o figurino. Artigos verdadeiros. Não são cópias. E ouvi dizer que o diretor foi buscar pessoalmente o sofá na Rússia.

HOMEM – Não parece russo. Parece chinês. E onde está a porra do diretor? Quero fazer umas perguntas. Ele sabe onde fica a Rússia? Por que tudo que ele traz da Rússia parece chinês?

VELHO – O diretor já deveria estar aqui.

HOMEM – Sim, deveria estar aqui. No meio da apresentação o sujeito desaparece. Não tem cabimento.

VELHO – E na frente de toda gente. O roteirista também não apareceu. De fato, nunca o vi.

HOMEM – É verdade. Nem eu. E se ele é russo porque ele escreveu a peça em chinês?

VELHO – Talvez o tenham traduzido para o chinês.

HOMEM – É, talvez. Mas quem se daria ao trabalho? E como eu estou falando chinês? Eu não falo chinês!

VELHO – Tenho uma revelação a fazer.

(Música grave de fundo)

HOMEM – Que revelação?

VELHO – Eu escrevi a peça. Originalmente em russo, depois traduzi para doze idiomas. O estranho é que não traduzi para o chinês.

HOMEM – Por que escreveu em russo? E por que estamos falando em chinês?

VELHO – Porque talvez respeitassem mais a peça, vinda de fora, autor estrangeiro... E você, na peça, é um chinês.

HOMEM – Nai?

VELHO – Nai sou eu. Nenhum outro nome veio à cabeça. Você é Bodo.

HOMEM – E qual é a moral da peça?

VELHO – Não sei, talvez você me diga. Vocês jovens têm um gosto para coisas sem sentido, às vezes. Farejam ao longe tudo que não tem sentido. Nós, russos, somos homens sérios. Mas gostamos de pregar uma peça, de vez enquando, com o perdão do trocadilho.

HOMEM – Um velho no sofá, uma crise existencial do ator coadjuvante, o ator coadjuvante começa a duvidar da lógica da peça, descobre que o outro ator é o roteirista da peça, disfarçado de ator, descobre que em seguida que é chinês... talvez se...

VELHO – Talvez se o que?

HOMEM – Não, seria muito óbvio.

(Começam a fechar as cortinas. Problema no mecanismo de fecha de cortinas, que trava. As cortinas ficam abertas pela metade. Vaias).

HOMEM – Vaias! E essas cortinas! Que merda de espetáculo! Francamente, o senhor não serve para essas coisas. Como durou tanto tempo aqui? E mais, de onde tirou essa idéia ridícula?

VELHO – Ganho dinheiro aqui. Estou velho. Faço o que mandam. Não fui eu quem teve a idéia.

HOMEM – E quem foi então?

VELHO – Foi o roteirista, é claro.

(Resolve-se o problema no mecanismo das cortinas. Fecham-se as cortinas.)