Carpe noctem
Quem sou eu?
Sou seu manto, seu amo, sou eu que te ensino a amar
Tenho muitas habilidades, jeitos de ser e de estar, sou o móvel mudo na sua sala-estar
Sou sujo e me limpo na sua toalha de algodão egípcio, refestelo-me no seu sofá
Me traga água e um bacia, e objetos de cortar
Vou fatiar a sua vida, picotar as lembranças de pessoas queridas e jogar tudo na água do mar
Não se assuste, sei manusear facas, adestrar cobras, cavalgar falos, engolir fogo
Eu engulo espadas e me afogo em gozo
Afago egos e desfaço nós
Afrouxo a corda que aperta o teu gogó
E solto tua voz estalada, cheia de mágoas entaladas e choros vividos a sós
Daí você me pede pra sair de sua casa e me mostrar na praça, botar a cara no sol
E eu só quero ficar em casa com minhas facas, minhas cobras, meus próprios sóis
Então você insiste e eu retruco com dedo em riste: vá e veja
Veja o que fizeram com os montes, como sujaram as águas e cimentaram o chão
Ainda ontem ergueram um falo imenso no meio da rua e ninguém sentiu vergonha, não teve aquela sanha de ir lá derrubar
Deram o nome de obelisco, mas eu arrisco que se chamaria de o grande pau ou o pau grande
E até lamberiam-no, caso não fosse de cimento e cal
Sentariam nele se a ponta não estivesse tão ao céu
Vá lá e veja e viva, mas volte pra casa e me traga mais água limpa, ervas, sal e cerveja
Traga-me presentes, incensos, pedras, absinto, etc e tal
Outro dia você me prometeu sangue mas me deu sêmem e escapou de madrugada
Disse que me traria cabeças em bandejas de prata, mas nada
Fugiu na calada da noite, noite cálida e sem luar
Depois de usar meu corpo, depois de sugar a última gota do meu mosto, você se foi só depois de meu corpo dilapidar
Este corpo que é um templo já solapado pelo tempo
Onde o limo se acumula, onde a pedra sussurra a prece dita ao vento
Lugar onde ninguém mais vem adorar
Quem sou eu?
Eu sou a pergunta que não quer calar.