Poema neutro e longo aos olhos
I
Não sou santo
não quero ser santo
não posso querer ser santo
Santo é alguém que não viveu e aprendeu
a ver nisso alguma vantagem
mas qualquer vantagem que exista em que se não viva
é fantasia
inda que bela
é estúpida fantasia
Quero que me odeiem e que me amem
e que não me odeiem e não me amem
que não me notem e que não vejam motivo pra falar ou não falar de mim
Ser neutro como o capim que só serve para ser capim
e para vir a tornar a ser capim é o que eu quero
O natural é que cada coisa só sirva para ser a coisa que é
por isso quero não servir pra ser santo
ou qualquer coisa que eu não seja
II
Quero não ser tonto
nem santo e nem tonto
não sirvo!
Não tenho culpas bastantes pra isso e nem neuras,
e nem grandes sonhos
Quero não servir nem pra ter sonhos
nem os mais belos
todos os sonhos normais do mundo já são meus
e também os pesadelos
Porque é natural ser amado eu quero ser amado
e ser odiado, porque me serve isso pra alguma coisa,
e é também natural
Quero ser reconhecido porque quero ser reconhecido
e depois ser desconhecido
O que eu não quero ser é santo,
porque não posso ser santo querer ser santo não é normal
Sou humanamente a-santo, dês-santo, in-santo
quanto humanamente se pode ser
Ser santo é ser exato, e eu não caibo em mim
III
Eu só quereria ser santo se isso significasse
não fazer média para ninguém
se isso fosse não representar nenhum papel em lugar nenhum
eu seria santo se não fosse preciso usar uma máscara imbecil
sobre meu rosto mais imbecil ainda
e se eu pudesse não esconder que gosto de cachimbo
e de transar
e de beber
Santo eu seria e só por santo ser mesmo
E eu seria santo entre todos os santos se não tivesse que me esconder da vida e de viver
seria santo-com-gosto se isso não fosse ser também pau oco
IV
Sou santo se isso for querer comer a vida como quem come uma manga
se lambuzando todo e limpando a baba da manga na manga da camisa
e ficando amarelo como a cara do menino que não sabe o que é ser inocente
Sou santo se isso for ter a cara lambida
até diante de Deus
cara escrachada, cara
escancarada!
cara de quem não deve nada nem a Deus, exceto o que de graça d’Ele recebeu e recebe
Seria eu santo só por ser
porque no baile de máscaras (Kierkegaard meu irmão!)
na noite dos mascarados dos homens eu iria sem máscara e sem chapéu
e de calças rasgadas só por não gostar de usá-las não rasgadas
e com os cabelos compridos e assanhados só por não gostar mesmo de cortá-los e penteá-los
iria como quem não vai para um baile de máscaras
iria doido!
Só por ser doido
Iria humano!
Só por ser humano
daí eu seria santo,
mas não quero ser santo
querer ser o santo é já-não-sê-lo
V
Jesus não era santo e se era – como dizem que foi
então os santos que se crêem santos não são
e nem sãos são
e para não ter que acusar de falsa uma tão grande multidão
(que é maioria, e não é bom para o pescoço acusar a maioria)
eu digo que Jesus não era santo
(mas a maioria também diz que ele era santo, nesse caso ou eu ou a maioria está certo – antecipo-me – não me levem tão a sério)
Não era santo quando desceu o cacete nos cambistas
ou quando acusou o Pai de o haver desamparado
a saber, não era santo quando era humano
Seus discípulos também não foram santos a menos que seja santo querer ser o maior no Reino
querer que caia fogo do céu sobre samaritanos
cortar orelhas e fugir e duvidar
se isso é ser santo, eu também sou, e só por ser mesmo
Eu seria santo se santo fosse ser errado e errante
mais errado que errante, e tanto mais errado quanto mais errante
VI
Não preciso de nenhum cânon pra viver
já vivo,
com cânon ou não
meu cânon é não ter cânon
meu cânon é o desafio de não ter o cânon
Preferiria o vício do tabaco ao vício de precisar que ditem o que posso ou não fazer.
Eu quero às vezes não saber o que fazer
e assim, ter que parar pra pensar
correr o risco de errar
não quero nada que já esteja pronto
O que é verdade? – eu não preciso saber
só sei-preciso-saber que é um caminho – e isso basta
Não quero Aristóteles e nem Hegel
Não quero o catecismo de Westminster e nem a confissão de Augsburg
Não quero levíticos (levitemos!)
Não quero as coisas absolutas e nem as relativas
a menos que seja eu quem as descubra e que elas só se apliquem a mim
Não quero moralidade também, e nem imoralidade, quero amoralidade
A minha.
Tudo me é licito e nem tudo me convém
Mas esse tudo cabe-me a mim descobri-lo
VII
Mas eu não sou santo
só por não poder ser mesmo ou por já-ser – se olhar-me de outra perspectiva
se já sou porque desejaria ser?
Não sou santo porque vejo e sinto tudo santo
incluindo-me a mim em minha não-santidade
A mangueira que vejo ali na esquina com os olhos verdes é santa
e os pássaros que a tornam encantada
e os cães que nela urinam
são santos
e acabo sou-sendo santo também
Mas se ser santo fosse ver tudo com os olhos magros
secos como as espigas dos sonhos do Faraó eu não seria
VIII
O mal não está nas coisas, mas nos olhos
dá-se à luz interiormente ao mal e esse mal
salta pelos olhos, boca, pele, gestos
na intenção de ouvir e ver mais e mais e possuir
e ter tudo o que se pode e não se pode ter
O mal não está na erva, mas no ser que come e bebe e fuma destrutivamente a erva
A erva é só uma erva
nasceu pra ser erva e só pra ser isso é que ela é
não se desespera pra ser erva
e nem pra não-ser
apenas é
existe e é erva
Assim deve ser o homem
ser sem desesperar pra ser ou não ser
o mal é justamente não querer ser ou querer desesperadamente ser
e nesse querer
querer ter tudo
- corpos, almas, vinhos e ervas
e querer ser tudo
IX
Os santos que conheço são os seres mais desesperados do mundo
por isso eu não quero ser santo
não dessa ordem de santos que é - e quer ser - tudo menos santo
X
Ah o ter-se no outro pra agüentar a viver!
Ah o consumir substâncias além do que permitem o corpo e as substâncias!
Ah a fama! Ah o depender psicofisicamente de Deus, da lei e do céu!
Não eu não quero essas coisas
quero pouco, muito pouco
o que me é concedido ter
e um pouco mais que me faça sofrer – mas pouco
Quero o equilíbrio e a moderação não como algo que se quer ter
mas como algo que se tem, e que se é
Que eu não me encha com uma coisa só
que eu deixe espaço pra provar de tudo um pouco
bem pouco
e que sempre sobre espaço pro novo
e pro desconhecido
Ah um bom vinho! Mas pouco
Ah sopa!!! Mas que eu não coma todo dia sopa
Ah uma rede! mas que eu não só viva deitado
XI
Não quero tudo – tampouco nada
querer evitar é o pior dos quereres
e querer não ter e não ser nada – pior que a inexistência!
XII
Serei profano se profano eu for
Se amar o tudo no pouco é ser profano eu o sou
Se santo, se profano, se qualquer coisa ou coisa nenhuma, que nome meu Deus?, não importa
O que é, é
e eu sou
mesmo que não quisesse, sou
mesmo que quisesse, sou
e sou-só-porque-sou-sendo
e sou porque sou-sendo n’Ele onde todas as coisas que existem são
é uma questão de olhos
ver ou não ver
o que se já é
e deixar-se ser
qual os lírios do campo.
(18/04/2008)