A CONTRAMÃO DA VIDA

Quando eu festejei o dia do meu sorriso

E saudei a ventura da minha alma

Era noite, não era dia

Eu joguei no fundo de um abismo o meu juízo

E passei a ter mais calma

E dormindo então eu sorria

Era um sonho bom de ser sonhado

Eu vinha andando pela rua

E a garoa me molhava;

Meu chapéu, todo ensopado

Brilhava com o pratear da Lua

Que a tudo iluminava.

Feliz, eu tinha a roupa encharcada

E a alma lavada de alegria

Eu estava no passado.

Trilhos de bondes na rua mal iluminada

Lampiões de gás, seresta, boemia,

Casais de namorados.

Meu sapato bicolor pisava

Paralelepípedos cantantes

Nas alamedas de outrora;

O cravo na lapela que eu usava

Estava mais vermelho do que antes

Molhado de garoa de tantas horas

Cheguei ao meu destino sorridente

A taverna dos poetas das arcadas

Tão molhados quanto eu e me abraçavam

Munidos de violões, flautas, contentes,

Poemas em folhas amassadas

Saímos porque as horas avançavam

Debaixo da sacada ali na esquina

Ao som dos instrumentos declamava

Os versos que escrevi horas antes

A sombra atrás da alva cortina

Era a moça que o flautista namorava

De longe, tristes e distantes.

Um balde de água fria desabou

Sobre cada um de nós num susto

A mãe da moça protestava impropérios

Assim a serenata acabou

E dispersamos com muito custo

Pra ir fazer sarau no cemitério

E ao som de uivos, coachos e sibilos

A lira de Byron reinava

E o ditirambo seguiu até nascer o dia

Já dormiam as corujas e os grilos

Quando o sol tímido raiava

E o mundo amanhecia

Seguimos cada um seu rumo certo

Antes de virarmos cinzas de poeta

Fomos dormir na contramão da vida;

Assim saí do passado e vim mais perto

Quando deitei em sonhos a jornada era completa

E acordei deste lado de cá da lida.

Pensei ao acordar tantas décadas depois

No mundo real, banal, sem gosto que hoje piso

Eu posso ser eu mesmo, ainda que aqui

Na dúvida do poema escrevi dois

Vesti-me de perfume e usei o melhor sorriso

Cobri-me de elegância e saí

Ao sol do dia mesmo, sem cenário de outras eras

Saí com meu chapéu sorrindo à toda gente

Parei num canto adiante e declamei minha poesia

Falei de vento, amor, mulher e primavera

Meus olhos brilhavam, meu rosto, sorridente,

Em nada com a alma triste d’antes parecia

Eu tinha asas, ainda que ninguém notasse nada

Estava tão feliz que nem notei, já anoitecia

E eu fiz tanta gente feliz que nem contara;

Naquela noite, não quis dormir, saí de madrugada

Não fui viver sonhos impossíveis na boemia

Fui viver meu estro real que eu sufocara.

Sem sortilégios de evasão sonhando

Vi que acordado eu posso ser feliz do lado de cá da existência

Quando a alma verdadeira sai

Então seguirei caminhando

Com passos firmes, queixo erguido, e ouvindo a consciência:

- Pega teu chapéu, Danilo, e vai!