Fábula
Pra ser feliz basta amar. Castro Alves
I
Narrador:
A mulher de seios firmes,
rosto belo e olhos tristes,
de boquinha de veludo,
sensual... Quem a resiste?
Se tu dizes ser valente
é porque tu nunca viste
Diva assim - sereia ardente,
fina Déia inteligente,
a mulher experiente
e de um luto muito triste.
Um efebo apaixonado
a beijou com mui vontade,
carinhou seu rosto belo,
o pescoço da Deidade...
Cafuné? Fez... Muito bom...
E a mulher muito gostou,
dando pernas pra o tufão
e o bom sonho se findou;
mas depois da cena linda,
de paixão, de terno amor...
A formosa quis fugir
pra um longínquo Viajor;
mas o jovem apaixonado
e com fé no bem chegado
se esqueceu da sua dor.
II
Efebo:
Estou perdido em absortos...
E não quero mais parar
de pensar nesta Deidade!
- Contumácia singular.
Ela diz: - És imaturo!...
Um efebo que aventuro
saciar meu bel prazer;
saciar minha carência,
também minha dependência,
pois carinho quer ter.
“Isto dentro de uma mente
sapiente e experiente
neste mórbido viver.”
III
Narrador:
Mas o jovem contraposto
não se importa em ter ventura:
dá paixão, muita ternura
à Deidade coroada
que se sente abençoada
em ter moço inteligente,
tão sensível e tão quente...
Que se sente arrebatada.
IV
Mulher Experiente:
Não me entrego facilmente,
pois meu peito é machucado,
o meu fardo é mui pesado,
meu desejo é caliente...
E eu o seguro fortemente,
pois meu corpo maculado
traz lembrança do passado
que não gosto de falar.
Eu prefiro segurar!
E os anelos mil guardar
neste peito magoado.
V
Narrador:
Mas o jovem não aceita,
diz que quer viver a vida
da maneira mais perfeita
se entregando a uma querida...
Quantos tempos de amargores,
ilusões e dissabores
que o mancebo fecundou?
Foram noites ao relento
pranteando um sentimento
bom de amar amar amar...
E que nunca suportou.
Anelando a boa Vida,
nunca mais quis ser estoldo,
creditando que no Amor
que se encontra o ledo toldo
para o abrigo do seu peito
que também é machucado,
que também é magoado
(e que dá complexo pleito).
Mas, no entanto, aquela cena
de amor pleno e de paixão
fez cair a sua pena,
sua triste maldição:
não deixar acontecer
algo lindo, belo e limpo?
Poderia a té dizer:
- Meu amor não dá pra ver?
Deixei tudo lá e vim, “pô”!
VI
Efebo:
Todo mundo leva fardo,
leva furo, leva toco,
leva murro, leva faca,
simplesmente leva soco...
Coração vive em sufoco!
Nego o foco dos meus olhos...
E tu vês somente abrolhos
e um bastardo doido e louco,
infra, verde, rubro, choco...
Não me importo co'a tristeza!
Dou meu peito à realeza,
porque quero amar um pouco.
Que se lasque meu passado
que perdido há muito está!
Meu futuro chegará
como o sol do meu estado...
E eu não quero mais ficar
lamentando tais derrotas,
sucumbido em triste mar
com meus sisos idiotas!
O poeta sabe tudo!
Venha Diva acreditar...
E só deixes que o porvir
venha ledo construir
a Letícia de um bom lar.
VII
Narrador:
E a mulher experiente
cede ao beijo com fervor
sem saber que o coração
sente férvida paixão
por querer não ter mais dor.
Seu anelo mais profundo
desabrocha como flor,
mas seu peito magoado,
tão ferido e lacerado
encarcera seu amor.
Uma luta dura, interna...
Ela sente fervilhar:
entre a carência e o desejo
e a vontade de entregar
sua mente e coração,
sua vida sem paixão
(que no instante quis florar)
se prendendo no seu íntimo
seu querer torna-se ínfimo
com a sua decisão:
VIII
Mulher Experiente:
É melhor não começarmos,
é melhor que terminemos
este início de paixão.
Eu não quero criar asas
e voar pelas montanhas,
pois meu peito ferve em brasas,
sente dores tão tamanhas.
Muito tempo eu não sentia
tudo escrito no Invisível...
Tu viestes tão sensível
colorindo a fantasia
que há muito adormecia
neste meu semblante punge;
mas não posso te aceitar,
nos querer e nos aunar
num enlace que nos unge.
Eu só peço que me deixes
nos meus ais soturnos, graves...
Porque sou pungente peixe
e não vôo como as aves.
VX
Narrador:
Sentir dor é tão normal...
(O mancebo assim pensava)
A pungência é só fanal!
(E seu siso que voava)
Mas de ímpeto falou
à Deidade que o escutava:
X
Efebo:
Eu também sofri horrores!...
Vi desgraças té demais!
A vilã Morte passou
e levou pra nunca mais
meus amigos, meus parentes
pra lugares infernais.
Foi revólver... e o estampido
que feriu o meu ouvido,
meu espírito também.
Foi no instante, bem no ato
testemunhei assassinato,
mas corri sem rumo, além.
E foi quando, neste trem
que chamamos - nossa vida
vi uma alma ser tirada
e levada para o Além.
A minh’ alma está marcada
e eu não conto pra ninguém.
Eu também sofri horrores!...
Senti o peso da pobreza...
Sem ter pão pra pôr à mesa,
sem camisa e sem calçado...
Minha casa - ó minha deusa!
Quando em tempo de verão
(ó quão triste o meu estado,
como chora o coração!),
era só lamúrias mil!
Porque o tempo era de chuva
e só dentro a água caía
- Isto não é como uva
doce, boa e fermentada
- Afinal quando chovia
mais molhava a minha casa
do que a própria terra nua...
Baldes, latas e bacias
que serviam ante a lua
pra guardarem a água fria
da goteira que corria,
mas aqui inda perpetua.
XI
Mulher Experiente:
Este não é o meu assunto,
não tem nada a ver conosco.
Tu só queres amargar
mais ainda o peito tosco,
quer abrir mais o meu olho,
mas o deixa bem mais fosco.
XII
Efebo:
Eu também sofri horrores!...
Quando vi minha donzela
apertar a minha mão
com olhar de Cindera,
dar-me um beijo muito frio,
um abraço tão sombrio,
se virando sem ter brio
para entrar a casa dela!
Lá se fora o meu amor!...
Meu primeiro e grande amor...
Me deixando co' uma dor
e pensando sempre nela.
Eu sofri - depois - dois anos:
Todos meus tolos enganos
para ter nova donzela.
XIII
Narrador:
A mulher já não sabia,
pois o tempo era remoto,
mas no fundo ela sentia
que a Lembrança é uma foto,
talvez vídeo numa fita
que nos faz lembrar da vida,
ilusão e despedida,
tanta mágoa ressentida
e pungência e depressão,
o complexo em ascensão,
depois medo à coesão:
água, terra - flor nascida,
sementinha de um botão
que não cresce à terra seca,
a brutal cacologia
que a mulher - e todo homem
- a medrosa e o lobisomem
- almas gêmeas fugidias
que não têm nenhum cacife,
vivem dentro de um esquife,
pois têm medo da Alegria.
XIX
Efebo:
Eu também sofri horrores!...
Porque dei o meu amor
para a dama enaltecida
que queria ver a dor
neste peito sofredor
que almejava só ter Vida.
Nas entranhas da perfídia
o meu peito desabou
quando aquela má notícia
em meus tímpanos chegou:
“Cascavel - a sua ex!
Te traíra sem remorso.
Tu saías - toda vez
se esfregava em outro dorso.”
Era festa - casamento,
união de sentimento,
onde aquele vil momento
fez tornar meu pensamento
de feliz - para tormento.
Senti fúria no meu peito,
sentimento de vingança
- não podia acreditar!
“Nunca mais irei amar;
nunca mais serei criança!”
Eu pensei naquele dia,
onde a minha rebeldia
do meu senso se eclodia
para ter muita esquivança.
XV
Mulher Experiente:
Todo mundo tem seu jeito
para não sentir mais dor:
uns se afogam na bebida,
outros vivem ser ter cor,
outros fogem do Invisível,
mesmo assim quer ter amor.
Já tem gente que fecha
em seu próprio e tolo mundo,
cria vãs filosofias
para obter mais alegrias,
mas é triste lá no fundo.
XVI
Narrador:
E tal tese era correta
da mulher experiente.
Com certeza nalgum dia
também fora bem plangente;
mas o que ela não sabia
que a primeira namorada
era muito venerada,
tão amada co' alegria
e que o jovem merecia
ideal fidelidade,
ter justiça e claridade
por qualquer das atitudes:
tão sinceras em virtudes
e tão justas de verdade,
ou naquelas infelizes
que nos deixam cicatrizes
para toda a Eternidade.
... E ela disse: - Também amo!
(Isto já fora um engano)
Com Letícia mentirosa...
E o mancebo em desgostosa
fúria teve o senso insano
(quando soube da Verdade).
E o mancebo triste e incrédulo
sem saber o que fazer,
preferiu viver a vida
em momentos de prazer.
Tudo, tudo era momento:
“Nada mais é sentimento.
É só troca de favores:
tu me dás o teu amor,
muito beijo com fervor
e terás os meus penhores.”
Isto foi o que pensou
quando a dama se virou
e o deixou com muitas dores.
E foi neste meio tempo,
breve tempo de dois anos
- que vivera numa furna
mui soturna em desenganos
- que surgiu outra donzela
sem ter medo dos arcanos.
Mas, porém, a pouca idade
nos revela que a surpresa
pode nos trazer tristeza,
grande caos, calamidade...
E perdemos sanidade
para agir com a loucura
e cavamos sepultura
que não tem mais claridade.
XVII
Efebo:
Eu também sofri horrores!...
Foi na minha adolescência...
Onde meu segundo amor
me feriu com punhaladas.
Eu tentei fazer das flores
um perfume com essência
de excelência e de valor
às pessoas mais amadas.
Foram muitas brigas tolas!
Té por causa de batata.
Desrespeito - até agressão
(Gente néscia assim se trata).
Nós passamos tantos anos
aprendendo até demais,
mas nós nunca conseguimos
a vencer os vendavais.
E você não tem noção
do tamanho deste amor!
Perdoei pra resistir
e pra nunca mais sentir
a incruenta e torpe dor.
XVIII
Mulher Experiente:
Perdoar é gesto nobre,
é doar que tem no cofre,
mas perdão quem dá na vida
se machuca e sempre sofre.
E o sofrer sempre é silente,
corrosivo e depressivo
o não dito a toda gente
no teu peito é muito vivo.
Eu? Me calo. Me abro? Nunca!
Tenho medo deste mal...
E você sabe de tudo:
Tu tens bola de cristal?
Tenho medo de você,
pois tu és um enigmático
e descobre a minha mente
com seu modo que é tão prático.
Tu consegues descobrir
as minúcias da minh' alma
e desvendas meus mistérios,
mas sou eu que estou sem palma.
Tu és homem - e sensível
- neste mundo - quase extinto
- aonde vai minha atenção,
o meu medo e o meu instinto:
me conheço muito bem,
vai por mim que dará certo:
é melhor ficares longe,
afastado feito um monge
que ficar aqui bem perto.
Sei que tu és muito esperto,
sapiente até demais,
com ternura que me apraz...
Nunca vi homem assim:
adivinho e tão sensível,
mas você não é pra mim.
Moras longe e é difícil
conviver sem nunca ver
e querer, mas não poder
ter o afago seu que é bom;
porém não vou te esquecer
mesmo sendo o meu querer,
pois só tu que tens o dom...
E desvendas e revelas,
compreendes a mulher...
E o Destino é tão verdugo,
não quis ser nosso chofer.
XIX
Narrador:
O mancebo até que tinha
muito para comentar
do desejo que aflorava
e queria só voar;
ele há muito já sabia
que, também - sim - despertara
o desejo na mulher
- a dileta peça rara
- com seu olho muito vivo,
seu rostinho de pidão,
comentou para tentar
conquistar o coração:
XX
Efebo:
Isto aqui que tu viveste
não ocorre todo dia!
Este clima foi perfeito
e me deu muita alegria,
porque fez nascer em mim
o que há muito adormecia...
Eu senti... e fui intenso...
Sei que tu sentiu o mesmo!
Guarde, peço, por favor!
E não jogues tudo a esmo.
Não mais deixes que o teu “eu”
fique preso sem ter calma
no desejo de voar
- devaneios da tua alma
- que a Razão te passe um rodo
pra ficares em um lodo
tão soturno e tão sem palma.
Pois senti que o esconderijo,
teu segredo mais profundo,
só buscava a paz no mundo
e encontrou em meu terno beijo.
Mas teu “eu” fez-se de rijo
desprezando o meu afago,
a magia do seu mago
e o meu cândido desejo.
XXI
Narrador:
Murmurou: - Pra sempre adeus. Castro Alves
Abraçaram-se mais uma
vez com gosto e de emoção,
mas um beijo feito pluma
fez brotar nova paixão.
- Um amplexo com ternura
- Um suspiro com fervor
- “good bye” tão sem ventura
“Nunca mais meu grande amor...”
A mulher experiente
deu sorriso mais adeus
e o mancebo pensativo
com um gesto depressivo
murmurou: “ - Pra sempre adeus.”
No caminho volta ao lar
a mulher sentiu desejo...
Sua carne remexia
ao lembrar daquele beijo,
mas seu peito lhe dizia
pra frear sua utopia
e voltar pra o vilarejo.
No caminho volta ao lar...
(O mancebo quase em pranto)
por perder sua ventura,
o seu gozo pleno e tanto.
Poderia ser um gênio
pra aguardar que o outro decênio
lhe trouxesse um novo canto.
“Nunca mais felicidade!...
Nunca mais meus ledos cânticos!...
Nunca mais a nova chance
de ganhar climas românticos!”
Seus caminhos se partiram,
Mar Vermelho terreal,
o sepulcro mais real
da paixão, do ledo amor.
Um de luto então ficou,
pois sentia dor tamanha...
E a mulher que tinha a manha
foi seguindo o Viajor...
Abraçando outros mancebos
e fugindo sem parar,
mas a mente lhe dizia
num perene de pensar,
que trazia-lhe o desejo
de voltar sentir o beijo
do mancebo e se entregar.
E por causa de tolices
há desgraça e muita dor,
solidão, tanta amargura...
Nosso mundo está sem cor!
É mais fácil só querer
caridade do outro ser
do que dar o próprio amor.
09/04/2009 11h48