GÉNESE

há coisas que começam pelo fim e depois não acabam

por isso agora eu posso escrever-te este poema

e este poema podes ser simplesmente tu

ou as tuas mãos enquanto me apertam

os botões da camisa ou quando me beijam

os olhos cheios do teu corpo durante o banho:

no princípio tudo parecia estar a terminar

e um dia decidiste incendiar tudo à tua volta

mas quando os teus braços fatiaram o céu

eu era um bicho de espuma numa jaula de vidro

e tu um reflexo de medo dentro da minha boca

que forçava o silêncio de tudo menos dos olhos

depois criaste os riffs de ti em guitarras de voz

e eu nunca mais deixei de te ouvir tocar-me nos lábios

dedilhaste-me freneticamente o corpo nocturno

e desde então que amanheces sonora

debaixo da minha língua na ponta dos meus dedos

dentro do meu peito de água

como se unhas de sombras viúvas rasgassem o sol

ao terceiro dia desligaste os dias

apareceste-me nua de luz

escondeste o crepúsculo das flores

fizeste a insónia as tempestades e as palavras

disseste-me procura-me e ficaste

a timidez das palavras: depois do terceiro veio o quinto

o quarto dia foi só a transparência dos corpos

depois de vencermos o vento as trevas e os nomes

foi apenas a cegueira dos vulcões

por todo lado em todos os lados a fúria da magia

tu já existias inventaste-me apenas a mim

depois o deserto e a mais pesada das tarefas

os pés enterrados a imobilidade

o suor do silêncio a queimar-nos a pele

os ossos queimados

as palavras a derreterem em folhas perdidas

a lentidão da morte

mas ao sexto dia foi a distância que morreu novamente

e perto um do outro não sabemos senão estar juntos

durante todo o dia semeámos orquídeas nas mãos

contruímos devagar o lado de dentro das fontes

dividimos o mundo e conquistámos a eternidade

de noite adormeceste a segredar-me o que seria o sétimo:

há coisas que começam pelo fim e depois não acabam

por isso amanhã podes escrever-me este poema

e este poema posso ser simplesmente eu

ou as minhas mãos enquanto te apertam

os botões da camisa ou quando te beijam

os olhos cheios do meu corpo durante o banho

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Luís Abreu
Enviado por Luís Abreu em 20/08/2006
Código do texto: T221315