sobre o amor como verdade ou bobagem e sobre quem sou e quem somos em mais de cem versos loucos e com alguma tentativa de santidade

se o amor é o não

se ele é a exceção

se ele é vento frio e necessário

que bate nos pelos de meu magro peito sem camisa

na tarde fresca de meu bairro

não me pergunte

e se me perguntarem eu não saberei responder

nada sobre o amor e suas implicações

se o amor é música folk cantada por mulher negra e seu enorme violão

se o amor é chuva

se o amor é a eterna solidão de cada pessoa

se é o amor paixão

se é o amor piedade

se é verdade...

o amor não é verdade

o amor confunde

como o vazio da embalagem

como carta em branco

como poesia

como declarações de amor

o amor confunde

o amor é uma bobagem

as coisas sim

estas existem um pouco mais que o amor

talvez não muito mais

mas as coisas derretem menos que amores

refiro-me às que possuem massa e pegação

amor não tem pegação

amor não tem sentido

é dança sem coreografia

amor é sem caligrafia

pois é feito de código indecifrável e verde

amor é feito de poder

e isso faz dele um déspota cego e mau

faz dele um monstro invisível

um bicho egoísta que nem deveria ser lembrado

por sua maldade ou inexistência

que contunde a calma de nossa tentativa de lógica

um mapa esfarrapado para nossa viagem

o amor, o inexistente amor

o amor confunde

o amor é uma bobagem

meus heróis da música e da poesia

pobres pessoas mortas

atrapalharam meu aprendizado

fazendo-me perder meu tempo com amor

e perder tempo é um crime

somos todos criminosos

arregaçar as mangas e amar menos

isso sim

maldita música

maldita poesia

eu maldito

um orgulhoso maldito

orgulhoso por minha maldição

que encarno como segunda pele

como sangue colorido

como alto de montanha

como vastidões de horizonte

como vermelhidões de pôr-de-sóis

como pássaros voando em bando

como olho curioso de bebê em colo de mãe

a me fitar com poder e impavidez

vão à merda os poetas juntamente com o amor

eu quero os olhos do bebê em cima de mim

a me humilhar com doçura e radiação

eu quero sentir a vida das coisas

sentir dentro do meu estômago o mapa-mundi

sentir de dentro dela o fogo

sentir o som da bateria na garagem

o amor confunde

o amor é uma bobagem

sentir de cada cama

o sabor de cada sal e doce

de cada pedaço de carne e pele feminina

de cada som de mulher

de cada mentira de mulher

sentir, sentir, sentir...

sentir cada amanhã e cada ontem

pois o hoje é uma coisa que não existe

o hoje é uma mentira de alguns pensadores bobões

fugir da morte como o diabo foge da dor

aceitar a ausência dos deuses

ou acatar a prática presença dos deuses que criaram para nós

e eles são tão presentes quanto o amor

os deuses são os presentes da história dos homens

são a dádiva da subjetividade máxima

os deuses são o máximo

o amor é o máximo

a fé é um desbunde

nem de passagem sem eles se vive

o amor confunde

o amor é uma bobagem

e você?

o que andam dizendo teus pés?

qual tua flor preferida?

de que árvore vai querer

ao fim de uma caminhada, deitar à sombra?

você, que é filha da tempestade

você, que é uma estufa de plantas delicadas

você, que é cacto do deserto

alga marinha

orca

vaca sagrada

pantera

águia

que tudo vê: menos o espelho

espelhos pouco servem

é nos espelhos quebrados que ferve a verdade

cacos de espelhos são cortantes como pétalas de luz

e, no corte, encontra o amor

e suas possibilidades infindas

votando a mim...

que é o que menos interessa

e, por isso mesmo, a coisa mais pessoal

sou o maior mentiroso de mim

pois quero

e sei que o amor é querer

e que o amor é o puro egoísmo

e o quero ainda assim

quero a sua mentira

quero ser egoísta e pequeno monstro

quero morrer sem matar

não o paraíso com as virgens elétricas

mas a terra preta com a satisfação dos meus corpos

quero a bobagem da música e da poesia

quero a praticidade da refeição sexual

cheia de entradas e sobremesas

e ainda quero a santidade

quero muito?

pretensioso?

sim, pretensioso

brotassem de mim gestos de ajuda

tenho visto tanto sofrimento

e ainda sonho em gozar

acho que mereço

mas por que razão mereceria?

sou o homem de papelão

sou o cristão ateu

sou o pino de boliche

sou o torpedo enferrujado do submarino russo

sou a bandeira vermelha

sou o homem elástico

sou um violão velho

sou um fio de cabelo branco, barba branca

sou a barba do profeta confuso

sou a tesoura de picar fotografia

sou um clitóris

sou um mamilo

sou um gorila dopado

sou louco como um sábio

sou um dilema silencioso

sou um diário com auto-falante

sou um santo exibicionista

diretor, montador e editor de mim

profeta de mim

e tão fraco...

e tão dependente...

e tão...

...inesperadamente poderoso.