A passagem

A claridade adentrava as frestas da persiana azul, quando me despertei sob lençóis brancos. Corri as mãos sobre a cama vazia buscando sentir sua presença.

O despertador a estourar meus tímpanos e a triste realidade que não era sábado, a responsabilidade me chamava. Uma ducha era tudo que eu precisava. O hidratante com cheiro de flores da primavera e as mãos deslizavam num ritmo diferente sobre minha pele jovem. O espelho projetava a imagem de uma linda mulher, assim era eu naquele momento. Mas não ousei pensar. A lingerie branca talvez fosse o prenúncio de que algo estava diferente naquela manhã. Nada de preto, a não ser o cabelo liso sobre os ombros nus.

O café e senti a ponta da faca penetrar a palma da mão enquanto cortava um pedaço de pão. Uma só gota de sangue, mas doeu como se tivesse retalhado todo corpo. Um corte quase invisível a não ser por um risco vermelho.

Até o creme dental tinha um gosto diferente e fiquei fazendo bolhas com sabor de flores. E mais uma vez assustei ao ver-me no espelho, havia uma luz brilhante nos meus olhos. Mas não me permiti pensar.

A maquiagem leve, lilás e rosa, uma combinação harmoniosa, longe dos tons escuros que sempre usei. A janela aberta e senti o vento do inverno soprar de leve. Um arrepio nos braços e pescoço, eu estava atrasada.

Por fim, coloquei a sandália dourada para combinar com o bordado do vestido branco de algodão.

Como bailarina, eu fiquei rodopiando frente ao espelho. A casa estava muito silenciosa naquela manhã. Eu estava mesmo atrasada.

O dia parecia perfeito, olhei mais uma vez para as montanhas que recortavam o céu de um azul tão intenso e não consegui enxergar. A luz nos meus olhos. Mas onde estavam todos?

Li o bilhete na mesa. Alguém morrera, porque não me avisaram?

Parentes e amigos a velarem a passagem de uma alma. Quantas flores com cheiro de hidratante, a minha música. Alguns choravam, outros em silêncio. E fui deslizando entre as pessoas até chegar frente à urna.

Realmente eu estava linda naquele vestido branco com bordado dourado. Eu só queria entender o que eu fazia dentro da urna toda revestida por filetes dourados. Eu estava viva. Mais uma brincadeira sem graça, mas todos me eram indiferentes.

Sentei de frente para minha imagem imóvel, olhando para cada rosto. Eu não lembrava nada a não ser que despertei naquela manhã com uma claridade forte, entrando pelas frestas da persiana azul.

Num repente todos se foram e eu permaneci sentada olhando para a luz prata que entrava pela porta, não senti vontade de me aproximar. Não desejei pensar.

E então, ele surgiu no meio da luz e veio até mim. Estava lindo num terno azul escuro. Ao som da nossa música, dançamos como nos velhos tempos e todo ambiente ficou cada vez mais claro, a luz cada vez mais forte e senti meu corpo flutuar.

Denia Dutra
Enviado por Denia Dutra em 21/09/2014
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