epigrafando

lembras-te dos dias… e das flores desses dias

cor do azul que florescia do céu?

não perdiam a cor prometida, não secavam

nem desfolhavam

nem lágrimas vertiam sem o prazer de chorar

e do vento desses dias

dessa aragem morna que se levantava

em risos de crianças que corriam

e cresciam como as flores e a água?

não havia sombras

nem gritos abafados e reprimidos…

só êxtase !

até os bichos cresciam doutro modo

entre as flores de risos

e dos dias incendiados de alegria

não havia coisas mortas…

havia a vida

e o murmurar do mundo na tua face,

o incêndio da tua voz

os teus cânticos e o eco que se repetia

nas encostas carregadas de fogo

e frescura de luz…

nelas viviam deuses

que não precisavam acordar

do sono em que estavam mergulhados...

misturavam-se no murmúrio do dia e das vozes

da noite, certezas eternas

eram a força do querer,

a eternidade inteira!

eram silêncios de pedra a florescer

no espaço desse jardim breve, como a nossa vida

falemos de flores agora...

vou falar-te de flores,

daquelas flores lânguidas róseas e ácidas

(às vezes ácidas também!)

caídas dum terraço ajardinado e alvo

a espraiar-se para o azul acetinado do céu

e ao fundo da aldeia, sempre ao fundo

uma viela escura de sombras caídas

para os degraus graníticos que a escrita do tempo

se encarregou de marcar…

aí se enclausuraram viúvas de negro vestidas

para o resto da vida

no seu rosto curtido de rugas cavadas

talhado pelo sol e sal salgado da brisa do mar

há palavras que não precisam falar para dizer…

há marcas de lágrimas vertidas

que nem sempre foram as flores róseas

de que te falo agora

quero falar-te de flores…

flores que sejam vermelhas sem serem de sangue

vertido em campos de batalhas,

sem serem aquelas flores depositadas

em campas amortalhadas

flores que sejam rosas sem espinhos

amarelas lilases brancas... de todas as cores...

como aquelas doutros tempos que colocavas

nos anéis dos teus cabelos loiros, dependuradas

flores doces que derribem desses terraços

e bordem o branco caiado dos muros

e manchem e acolchetem as pedras do chão

e apaguem todas as dores...

flores diferentes, entendes-me?

malmequeres, margaridas do campo

flores sem nome…

de pétalas suaves a bordejar a tua blusa de cetim

quando em queda livre eram levadas contigo

pela aragem da tarde e guardavam em segredo

o medo do nosso último beijo ao partires de mim

pétalas que nós arrancávamos

num mal-me-quer bem-me-quer desesperado,

num olhar tímido e envergonhado em interrogações

inquietantes inquietas ausentes

de olhos pregados no chão e pensamento perdido

num horizonte ébrio de amor e sem tréguas

deixa que te fale de flores, agora

como antigamente

com calma e doçura…

flores brancas e de todas as cores

mas que não sejam ácidas

como tantas vezes foram

e tiveram ausência de ternura

escuta-me sem nada dizeres… respira apenas

com a tua boca à minha colada,

respira…

sorve o ar que em nosso redor entoa memórias

e extasia os sentidos

sente que levas contigo os sonhos

que soltámos

outrora

em cada pétala caída

nesse mal-me-quer bem-me-quer desesperado

das flores que desfolhámos na vida

e perdoa…

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Fernando A. Almeida Reis © derribem do corpo as flores

publicado em "notas" do meu perfil no Facebook em Jan2015