Entre um homem e uma obra de arte...

Prefiro uma obra de arte a um homem.

Claro, todos nós uma obra de arte, todos nós artistas, mas que haja algo sempre a descobrir, um novo desdobramento, uma obra que sempre mudando signifique cada vez mais a mesma coisa.

Muitas vezes esculturas, frias, estáticas, como são, me fazem sentir mais do que um homem. Mesmo que encolhidas no próprio púlpito. Os poemas, mesmo sem carne, distantes, me arrepiam, passam pelos meus olhos carregando tanto encontro, tantas semelhanças, que me emocionam mais que um pai de meu filho.

No seu ofício de homem, de rosto, pele, cabelos e sexo, o homem estará sempre me lembrando do que eu era. Do que eu era, um dia atrás, do que eu era, quando a gente se conheceu. A arte, no seu ofício de arte, seja colorida, cinza, em letras ou rabiscos, me acompanhará, sem perguntas, e no máximo, deixará de significar uma coisa pra significar outra, significar o passado.

A arte estará em todos os dias, sentada todas as manhãs aos meu lado, pegando ônibus comigo, mesmo que eu durma com outros homens, mesmo que eu engorde, mesmo que eu já não sorria, mesmo que eu morra, a arte estará no último suspiro, e depois sobre o túmulo, e depois dentro do túmulo, junto comigo, eu apodrecendo e ela sempre eterna. Ao meu lado.

O homem terá escolhas. Poderá escolher estar todas manhãs ao meu lado ou não. Poderá escolher trocar o envelhecido, o superado, o insuportável, por qualquer coisa mais fácil. Mesmo comigo, nunca estará comigo. Nunca estará, como arte, como uma lente sobre meus olhos, colocando graça nos prédios altos tomando sol como banhistas enfileirados, colocando simetria nos terminais, sonhos em realidade, felicidade nos dias tristes.

Como amante, me cabe servir à natureza do homem e tentar compreendê-la. Me cabe amar, sempre, me cabe servir, me cabe colocar a minha melhor máscara para que essa seja suportável, me cabe me transformar em presentes, em mesa em que se colocam os pés, me cabe parar o que estou fazendo e checar se está bem como uma mãe faz a uma criança, minha maior habilidade ser me transformar em algo inerte, puro, livre de questões, dúvidas, anseios, para não atrapalhar meu amor, que deve ser certo como minha fé em Deus.

Como artista, ou como simples arte, eu escolho. Numa gama infinita de estilos, cores, métricas ou falta de métricas, eu escolho se posso me corromper ou me purificar. Ou ambos. A arte me lembra candidamente que eu posso ser cheia de significados lindos, finíssima sob o sol, mas também, sendo humana e mortal, posso ser porca, posso duvidar da bondade humana, posso zombar, odiar, ser inútil, não servir à arte e só a mim, não ter propósitos e me contradizer. É natural. A própria arte pode se fazer assim. Pode esculpir santos e também pode cuspir neles.

A arte transforma práticas em significado. Eternamente criança, ela bota teoria nos buracos do chão, nas poças presentes nos buracos, se banha neles. O amor transforma significado em práticas. Eu, que te amo, que tenho o sentimento maior do mundo por você, vou transformar isso em rotina, em dia a dia, em um buquê de flores nas datas especiais (especiais porque a TV disse que eram especiais), vou te levar a jantares, tentar te suportar sem precisar de terceiros, te esconder a verdade...

Como amante, alguém sempre me lembrará do que fui ou como devia ser. Como arte, terei a liberdade de ser qualquer coisa todos os dias, me mudar de país, de corte de cabelo, de motivos, de verdade.

Um casal se separa. Se coloca em quatro paredes e mesmo que depois saíam do cômodo, muita coisa permanece. A arte faz duas pessoas se encontrarem. Duas pessoas sentirem algo que seja semelhante, se olharem e se reconhecerem como de frente a um espelho; a arte não tem ciúmes. A arte louva a solidão, mas também as multidões, os corações cheios de amigos, de homens, de cacos de vidro. Os poemas enfeitam a fala, as músicas agitam mesmo os mais cansados, os filmes deixam a felicidade ou a tristeza como aftertaste.

A arte salva pessoas, desmarca suicídios, a arte é sempre um abraço quente ou um murro na cara.

Nunca se sente nada com a arte.