Nossa gramática

De vez em sempre, eu me pego pensando em nós. Ainda que hoje o "nós" seja somente a primeira pessoa do plural, cujos versos, para mim, são flexionáveis apenas se no pretérito perfeito. Perfeito? Perfeito para a gramática e doloroso demais para meu coração. É triste pensar que tudo o fomos - ou poderíamos ser - já nasceu e morreu. E suportar nos ombros o peso das memórias me tem sido penoso demais.

Hoje eu sonhei com você. Quase como numa fotografia viva, eu estava em tempos passados. Tempos em que ainda existíamos. Éramos "nós" e conjugávamos todos os verbos no presente. Apaixonados que só pelos gerúndios: vivendo, sonhando, sorrindo e amando. Os planos, os sonhos, os medos, os mesmos velhos sentimentos, o nosso porta-retrato no móvel da televisão: absolutamente tudo ainda vivia. No sonho, você me ama. E eu te amo. Assim mesmo, no presente perfeito. E aqui sim o emprego da perfeição me foi dado exclusivamente pelo meu coração. Nós desfrutamos da sorte da reciprocidade.

O teu sorriso, sempre tão ingênuo, me cativa. Faz-me querer mais. E querer ser mais. Mas num processo sugestivo a metafísicas, uma luz forte me alcança a face. Não entendo ser Deus, mas não consigo sabê-la nem precisá-la. De todo, noto que, ao passo que a luz me chega mais forte, minha visão ofusca tua imagem. Será Deus? Haveria ele intenção de me tirar você? Não, não pode ser Deus... Se Deus é bom e feliz estou, creio eu que ele não faria tal afronta à minha humanidade. Ou talvez, então, ele só não seja assim tão bom...

A luz se firma cada vez mais e, agora, já arde-me. E você já sumiu quase que por completo. Enfim, eu acordo. A janela aberta me traz o sol - que já queimava meu rosto enquanto eu tentava reviver nós dois.

Curioso mesmo é pensar que hoje, aqui no mundo dos homens, mesmo que eu procure um universo paralelo para encontrar você, eu percebo que vivemos gramáticas diferentes. Teu "nós" continua morando no pretérito perfeito. O meu, por sua vez, segue no presente. Os planos, os sonhos, os medos, aqueles mesmos velhos e bobos sentimentos remoídos, o nosso porta-retrato já manchado pelo tempo no móvel da televisão, a nossa música no rádio: absolutamente tudo ainda vive em mim. E isso me tem feito morrer aos poucos.