Saudades estranhas

Sinto saudades estranhas,

saudades da escrita com nanquim,

sim, caneta bico de pena sob papel manteiga,

caligrafia caprichada e esmero para não borrar,

e nem ao século XIX pertenci, mas minha alma é antiga...

Sinto saudades distantes,

saudades das cordas de aço do violão Di Giorgio,

sim, onde aprendi a dedilhar as primeiras notas Dó e Ré,

agregando melodias às poesias que escrevo desde a adolescência,

e sim, sou do século XX, da segunda metade dos anos de 1970...

Sinto saudades afetivas,

saudades do gosto de maracujá do sorvete no trem,

nas tardes de domingo quando visitávamos os parentes,

adoçando uma vida de abandono, fome e intempéries,

enquanto as paisagens de cada estação viravam um borrão no tempo...

Sinto saudades intelectuais,

saudades do início do aprendizado da língua alemã,

das fortuitas tentativas de ler Goethe e Nietzsche no original,

embolando a língua para pronunciar com sentido palavras gigantescas,

rindo das músicas dos Beatles em alemão que poucos conhecem...

Sinto saudades literárias,

saudades dos livros de Machado de Assis e Lima Barreto,

de Dostoiévski, Kafka, Flaubert, Huxley e Allende nas noites de sábado,

companhias muito bem vindas quando tudo era silêncio e a solidão não doía,

o conhecimento era um portal para uma longa viagem por distintas culturas...

Sinto saudades musicais,

saudades do pop rock internacional dos anos 80', 90' e 2000,

de Footloose, Hungry Eyes, Forever Young, Ask Ask, Glory of Love,

entre danças de rodopios e abraços aconchegantes em festinhas de amigos,

jeans surrados, os tênis All Star, camisas xadrez e o Walkman tocando fitas K7...

Sinto saudades viajantes,

saudades dos pastéis de Belém com meia bica em Lisboa,

da francesinha do Porto, da biblioteca de Coimbra e as ruínas de Évora,

fontes italianas, os edifícios medievais de Perugia e Assis, do Tiramisù e gelatto,

ponte aérea entre Portugal e Itália, uma passagem rápida por Madri e Sevilla...

Sinto saudades de ontem,

saudades dos 18, 28, 38...quando os sonhos eram outros e as ilusões também,

nos 48, muitos fios grisalhos, olhos mais profundos e perdidos no horizonte,

muitas cicatrizes, algumas mágoas, esquecimentos e quase nenhum perdão,

no reflexo do espelho alguém que ainda aprende, se enternece e poetiza a vida...