QUEM SOU EU, Prosa Poética de Silas Correa Leite

QUEM SOU EU?

(Improviso para um solo de Jazz dodecafônico)

-Sou o que escreve porque não sabe se matar. Sou o que lê muito sempre fugindo do exato e doloroso verbo Viver. Sou o que respira auras e halos pelo fio de navalha da poesia-canga. Sou o que aprendeu cantar mentalmente porque não podia soar. Sou o que fugiu de viver e descobriu a Terra do Nunca num encantário de luz e poesia. Sou, a bem da verdade, uma bananeira que já deu goiaba em lata. Que acredita em Deus mas não vê Deus nos humanos. Sou o que foi criança e gostava de estar com os sábios mais velhos. Que foi jovem brucutu fora de seu tempo e com poucos amigos de verdade. Sou o que envelhece filosofias e enluos lidando com crianças. E reaprende sinais e conhecenças com elas... Sou o que foi humilhado e usou isso como dínamo para sobreviver como uma groselheira seca. Sou o que quebraram as pernas e aprendeu a voar sem muletas. Sou o que chora no escuro para não assustar quem ama e assim passar uma imagem de forte e bravo. Sou quem é sozinho pela própria natureza, e escreve muito para ter companhia. Como um eco no abismo. Sou um rapaz que amou Os Beatles & Tonico e Tinoco, mas Lennon morreu, George também, e ainda resta um caipira cantando mundos e campos de lavandas entre lírios laranjas. E ainda sola silêncios em alto relevo... Sou o que se esconde na cerveja, pois o vício predileto é querer ser árvore secular, ser nuvem além da fonte sagrada de todas as águas-mães, rio acima de todas as marés e ilhas, nunca mais um pobre e vil bicho-ser. Sou o que acredita na arte como libertação, na poesia como fermento, em Deus como um cartão de crédito antes do cianureto e atrás dos campos de trigo com corvos. Sou aquele que tem uma lenda pessoal para cumprir, vive e morre por isso, mas, coitado, coió e capiau ainda briga por arroz com feijão e couve rasgada na rala sopa de pedras dos inválidos. Sei que é o espírito que ama o espírito, antes do corpo amar o corpo, mas infelizmente sei também que uma andorinha só não faz outra andorinha. Sou o poeta que foi marceneiro entre cedros e borboletas, o professor que já foi bóia-fria e lanhou as mãos de manteiga derretida, o doutor engravatado que tem ficha nos podres porões da ditadura militar incompetente e corrupta, o jornalista de oficinas que cutuca onças com vara curta, um pobre aprendiz de feiticeiro que busca a mágica de ser feliz cem por cento blues. Tive inimigos e eles me fizeram bem, pois por eles auditei minha vida como páginas de rostos, meu caminho, minha busca pela estrada que vai dar no sol, além do pote cheio de árco-íris. Fui traído e aprendi a amar direito, como uma asa precisa amar outra asa para ter alce de mira. Passei fome e valorei o pão nosso de cada dia, fiquei desempregado muito tempo e passei a adorar levantar cedo na fralda da aurora para ir conseguir o ouro de tolo em terra de muito ouro e pouco pão. Sou o ferido zangão que põe o dedo na ferida da consciência humana. Sou alguém que nasceu em dimensão-travessa-placenta errada. Sou o que a mãe não quis e foi pai da mãe. Sou o que o pai não quis e foi mãe do pai. Sou o irmão que não dá lucro, não é boa companhia, escreve errado por línguas estranhas. Sou o que sonha o leão e o cordeiro no mesmo pasto. Isso: sou um semeador de estrelas no reino da fantasia dos despossuídos... Se perguntarem meu nome de batismo, digam: Prelúdio. Se quiserem saber meu filho, digam o Ausente. É no silêncio quase ninhal que escrevo isso que me ocorre agora, de improviso, quase um crepúsculo íntimo, porque uma amiga virtual me perguntou sabiamente quem sou. QUEM SOU? Ser ou não ser? Eis a questão-toleima. Na verdade, confesso (perdoem!) não sei quem sou. Mal-e-mal simplesmente só sei o que não sou. Aliás, se eu soubesse o que sou, não seria poeta, seria de fritar bolinhos. Estaria rico, feito na vida, morando em Londres. O último a sair, pague a conta. Poetas e grávidas primeiro... Há um Deus? Do jazz nasce a luz? Habemos ícaros. (Silas Corrêa Leite)