A náusea

O dia corre pelas vias normais,

O escritório está como é:

Um amontoado de papéis,

Escondendo letras mortas.

Papéis estão em toda parte,

Haverá papéis contando histórias,

Haverá papéis desvendando segredos.

Minhas gavetas escondem

A futilidade dos pensamentos.

É dia claro ainda,

É noite escura em minha alma, ainda.

Hoje a vida está como antes,

Um turbilhão de sensações.

Vejo que a caneta não escreve,

Falhou.

No aquário a água turva,

E o peixe cambaleando,

Torna-se um ornamento silencioso,

Com fome e molhado.

O movimento lento repara nas luzes,

Entra em sintonia,

Promove as paradas do tempo.

Nunca pude olhar para os amigos,

Eles estão aqui,

Presentes, de uma forma caudalosa,

A saudade que não perturba.

Cabem todos renitentes nas gavetas da memória.

O escritório tem o ar de uma câmara mortífera,

As paredes comprimem o corpo inerte,

Que se debruça sobre os afazeres banais.

Tudo está por fazer,

Quase todos os momentos estão defecados,

Prestes a despencar suavemente,

E as horas corrompem a memória do nada.

Então, a cantilena se repete,

São as mesmas vozes,

Os mesmos solstícios,

As concubinas celestiais a moverem-se quietas

No espaço de um escritório.

A náusea de viver é circundante,

Onde é que queremos chegar?

Com quantas tintas se faz um livro?

Por vezes, a pergunta insiste,

Inexiste completa guardada na estante.

Com ela, o corpo de uma mulher,

Deixado na biblioteca,

Entre os livros e as canetas e os vasos,

Tudo paramentado, enternecido,

Preservado na longevidade dos guardadores de livros.

Aquele corpo que poderia ser de uma personagem,

A lembrança cósmica de um ser escriturado.

Ao que me consta, corpos não podem ser guardados,

As letras, talvez,

Os pensamentos, talvez,

As sonoridades, talvez,

O pó dos armários, talvez.

Mas aquele corpo, improvável.

Os que passam pela vida,

Latejando suas angústias,

Em potes de ouro condensado,

Lamentam a fornicação de suas escolhas,

Presos aos véus cinzentos da dor ignota.

Mas tudo se move, parado e distante,

O movimento se rompe em delírios,

E o escritório ainda está aqui,

Ou ali, como a mente desejar.

Aquele corpo continuará preso aos livros,

Estará em dúzias de páginas mofadas,

Um corpo indelével, incorruptível,

Sem máculas e instantâneo,

Que se dissolve nas manhãs iguais.

Eu estarei aqui, para vê-lo, com minhas gavetas,

E meu cinzeiro de concha.

Grego
Enviado por Grego em 08/08/2006
Código do texto: T212128