Rússia Congelada

(Ao Carlos Drummond)

minha terra despertou

hoje como a rússia congelada.

não há vodka que possa queimar a garganta,

não há borsch que possa preencher o vazio

do estômago e da alma em zero absoluto.

minha terra despertou de luto branco

pela inconsolável perda de si mesma.

sou a menor matrioshka concebida

pelo homem, fuzilada por soldados

munidos de kalashnikovs em punho

e munição reserva enrolada no peito.

em cada buraco de bala revela-se

meu interior oco, inda que a tradição

afirme que a última matrioshka deva ser maciça

por ser a mais frágil e abarcada pelas demais.

sou o abandono e o desconsolo,

ogiva nuclear que implode e, entre tuas ruínas,

arruína talvez a única possibilidade de esperança,

inda que os pássaros cantem na janela

e biquem o vidro como chamado para a vida.

mas na rússia congelada não há substantivos

que propagam calor, apenas o frio desesperador

que estatiza os ponteiros do relógio.

hoje eu seria um bom amigo, carlos.

você que não se importava de ter amigo calado

e distante, mas que de alguma forma

possuía algo a oferecer secretamente.

sou tão calado que estou morto,

como estão àqueles cujas palavras deleito

em meu quase leito de morte impregnado

pelas impurezas da chuva que falsamente

pode transmitir a impressão de ser limpa.

hoje chove como se não houvesse hoje.

o calendário consumido não computa o dia

em que o mundo sumiu

mergulhado em angústias.

quando o frio bate à porta, não se pode

fingir que não há ninguém em casa para recebê-lo.

as dobradiças não são mais fortes do que teu poder

de aniquilação, então o deixo entrar

e faço companhia para tua indesejável visita.

mas logo entendo que não sou o anfitrião,

pois a rússia congelada é dominante em todos

os atos de sua mão mais pesada do que o inverno,

mais pesada do que o próprio inferno.

o inferno congelou-se

e hoje se mudou para dentro de mim.

cada palavra que escrevo é um batimento

a mais de coração para bombear o calor necessário

à prolongação da existência

por mais alguns minutos.

busco tuas pegadas, carlos,

por saber que trilharam caminhos seguros.

agarro-me ao que me é familiar pela medrosidade

de arriscar embarcando em um trem-bala.

resisto no trem de ferro, na velha locomotiva.

resisto em minas gerais com teus horizontes já não

tão belos e hoje fechados como

as tantas fronteiras da rússia congelada.

sou o dia nove de maio,

possivelmente apenas mais um dia

para a maioria das pessoas em todo o mundo,

mas que guarda resíduos de uma tristeza profunda

compreendida pelos nossos pares.

no chão de pé-de-moleque

caminho descalço e sangro em vermelho.

tento em vão enrolar meus pés em panos brancos,

mas não há branco que possa subjugar o vermelho

e, se insisto, o sangue jorra dos olhos e da boca.

insisto sempre e insisto mais.

por isso vermelha é a cor de minhas palavras

que jorram dos meus dedos...

...e então novamente vem mais um dia frio

derrubando portas, janelas e paredes,

lançando no ar a locomotiva e tudo o que motiva

mais um despertar... mas desperto.

e a rússia congelada hiberna

aguardando outro amanhã.

Davi Drummond
Enviado por Davi Drummond em 20/07/2015
Código do texto: T5317919
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