MEUS CACOS SE LEMBRAM

Me lembro de um lar

Bem ou mal, com ou sem harmonia

Era um lugar

E era a nossa cara em cada coisa que havia

A harmonia é o principal ingrediente

E ela pode ser adquirida

Com força de vontade, perseverança presente

Meta de vida

O problema é que reconhecer depois

As coisas que poderiam ter sido

Quando a unidade já virou dois

E eu tive meu fim merecido...

Serve pra que, pois então?

Pra não errar de novo? Onde?

Não quero mais isso não

Agora minha alma se esconde

Nos escombros dos meus cacos? Me pergunte!

Não há cola que os una novamente

Nem liga que os ajunte

Nem nada que os assente

Ventos de descrença os espalharam

Onde a curva não tem fim

Entre covas profundas afundaram

Partículas de mim

Cada caco do meu eu guarda lembranças

Além de sonhos esquecidos

Também descrenças e desesperanças

Também momentos bons antes vividos

Um caco do meu eu diz que se lembra bem

Das leituras toda noite de um capítulo ou dois

De biografias e sagas, de romances também

E aquela expectativa do que viria a ser depois

Outro se lembra dos caminhos da abnegação

De uma mulher que foi junto pro fundo do poço da miséria

E passou fome, necessidade, vontade e humilhação

Mas não abriu mão de estar comigo, em espírito e em matéria

Num cubículo anexo a garagem

Sem banheiro e sem comida

Vendo deteriorar a bagagem

E sonhando com outra vida

Outro se lembra de rirem do próprio infortúnio juntos

Fazendo um toldo sobre o colchão com plástico

no chão do quarto em dia de chuva e haja assunto

Pra conversar e rir num momento drástico

Tem cacos que só se lembram das coisas ruins

De brigas sem sentido

De discussões, porfias, coisas afins

E do bem tem se esquecido

Cacos que se lembram de agressões verbais,

Físicas, extrafísicas, extraterrestres,

Extrasensoriais,

Primitivas e rupestres

Cacos outros só se lembram da culpa de ter sido um peste

De ter sido um patife que escrevia e não lia

De ter sido cafageste

Um marido desgraçado que aprontou o que não devia

Cacos que se punem diariamente

Se obrigando a uma vida de autopunições

Sabotando-se para não ser feliz novamente

Ou não desgraçar novos corações

Outros cacos que se culpam também

De outras culpas, como ter tirado de uma menina

A alegria de de repente conhecer alguém

Que realmente teria sido o homem da sua sina

Da sina de ser feliz

Que é o direito natural do ser humano

Um homem que fizesse o que eu não fiz

E não lhe causasse tanto dano

Esses cacos diariamente se retorcem

De remorsos, culpas e autopunições

E nem que novos conselhos forcem

Eles não deixam suas autocondenações

Outro caco se lembra daquela carne picadinha

Temperada, cheirando

Um sorriso de boas vindas que vinha

Do rosto que me via chegando

De sopas nos dias frios feitas com carinho

Mesmo sem ela gostar de sopa alguma

De um bom cafezinho

Feito mesmo sem que ela bebesse xícara nenhuma

Da culinária variada

Da mais simples à mais cheia de novidades

Mesmo na sua tripla jornada

De trabalho, casa, faculdade

Tem cacos que se lembram das viagens anuais

Ao Rio de Janeiro

Andanças quilométricas demais

Felizes o dia inteiro

Conhecendo um Rio

Que muitos nem conhecem

Museus, parques, ruas, casarios,

E vistas que os cacos jamais esquecem

Tem cacos que se lembram de amigos da igreja

Onde deveria ser alento espiritual

Mas “a mão que afaga é a mesma que apedreja”

E a hipocrisia é o seu maior ritual

Tem cacos que se lembram de não ser visitado

Por nenhum parente em quase dezesseis anos corridos

Assim, visita espontânea em momento inesperado

Pra nos brindar com um dia colorido

Tem cacos que se lembram e me acusam de suas covas

De realmente ser o traste, o inútil e o fracassado

Porque o tempo é o senhor que tudo prova

Ela cresce, vence, avança, e eu continuo no mesmo estado

Tem cacos que me dizem que eu tenho qualidades

Que fui carinhoso, romântico e fiz mimos e surpresas

Que mesmo em brigas de titânicas insanidades

Jamais deixei de paparicar com minhas proezas

Eles me lembram dos cafés que levei

Das cestas, bilhetinhos e as diárias poesias,

De tudo que eu fazia, das flores que ofertei

Independentemente de porfias

Mas outros cacos voltam e acusam com intriga:

- De que adianta tudo isso que fazia

Se o mesmo “amante à moda antiga”

É um calhorda que causava mais de uma mágoa por dia?

Tem cacos que me acusam de abandono pós fim

E estes corroem e são fortes

Fazem um oco dentro de mim

E enchem minha alma de cortes

Me fazem penar com pensamentos

Me torturam com preocupações

Me perseguem com tormentos

E com as mais sinistras emoções

Mas outros cacos me defendem

Me dizem que tentei

Quando estou assim eles se ofendem

E me falam das situações que enfrentei

Falam-me de perseguições-pós-expulsões

Mesmo pós-fim-pós-volta-pós-fim

Perguntam-me quantas vez houve repetições

Questionam a mim

Mas outros cacos me perguntam veementes

Do quanto fui ajudado

De quantos episódios tive certamente

A colaboração e o cuidado

De quantas vezes se não fosse ela

Eu não teria conseguido

Mesmo pós-fim a consciência me revela

Que se não fosse ela, não teria sido

Tem uns cacos conscientes, que na verdade

Dizem que todos esses conflitos

Mostram que ambas as partes tem bondade e maldade

E isso é o que harmoniza o Universo Infinito

Que tudo se balanceia

Basta ter amor suficiente para ir adiante

Ternura correndo nas veias

Serem amigos, cúmplices e amantes

Saberem dosar o mal de bem

E no bem entenderem que há males que passam ensinamentos

E que momentos ruins sempre vem

Basta enfeitarem o lúgubre momento

Mas qual, cacos ainda me dizem rindo:

- Agora que você entendeu

Pegue essa consciência que vem vindo

E leve pra sempre a dor de quem se perdeu

Perdeu-se vendendo-se por nada

Perdeu-se no mal que plantou

Perdeu-se do seu conto de fadas

E dele nada sobrou

Perdeu-se como o tolo da canção do Skank

Perdeu-se na vida, na lida, em tudo

Pegue seu coração e arranque

E morra sozinho e mudo

Alguns cacos, por fim, ainda dizem nesta hora

Que após ouvirem cada grupo de cacos em seu parecer

Me aconselham a recomeçar agora

E ser como haveria de ser

Me dizem: - Não recolha nenhum caco antigo

Deixe-nos nestas covas escuras esquecidas

Não nos cole, não nos tire de nosso eterno abrigo

Nos dê a aposentadoria merecida

Você que é espírito, reencarne em vida

Não precisa colar cacos velhos para se refazer

Basta acreditar que há muito mais nessa lida

Para ser, estar e viver

Mas qual... O ser humano é complicado

E continuo todos os dias

A conversar com cada caco malfadado

Nesta eternal telepatia.

Danilo Marques.