Cenas da morte

- I -

E lá estou eu... deitado, inerte,

Em meu quarto, na minha cama.

Impossível!... Impassível.!!!

Estou me vendo... estou vendo o meu corpo.

Estou dormindo? Estou sonhando?

Por quê consigo me ver?

Junto a mim,

Estão meus dois maiores amigos,

Que identifico pelas vozes.

Chega no quarto uma mulher.

Não consigo saber quem é.

Traz um vaso com água e uma bacia.

Tiram minha roupa, me põem nu.

Reclamo com eles...

Ora, eu não estou doente.

Um deles pega o que parece ser uma toalha,

Embebe-a na água e começa a me lavar.

Enxugam-me.

Estranho...

Sinto uma leveza no ar.

Falo,

E ninguém me escuta.

Saio do quarto.

Vejo o vulto de minha mulher,

Aos prantos.

Procuro em vão por minha filha.

Não a vejo.

Tento ouvir a sua voz.

Pergunto por ela,

Não me respondem.

Tem uma pessoa no telefone...

Falando no meu celular.

Não consigo saber quem é.

E mais, não consigo entender direito,

O que ela fala, pois sussurra baixinho.

Saio pela porta da rua,

Vejo pessoas, carros,

Vultos num vai-e-vem constante.

Mas não as consigo vê-las nitidamente.

Estão difusas,

São apenas vultos tremulantes.

Entro alucinadamente em casa.

Grito. Peço que me escutem.

Ninguém me ouve.

Volto ao quarto,

E já estou vestido com uma roupa,

Que não tenho costume de usar.

Então ouço a voz de minha filha.

Vou desesperado ao seu encontro,

Para lhe abraçar,

Beijar,

Fazer um afago...

Vejo sua mãe lhe apertar contra o peito.

Beijá-la, acariciá-la carinhosamente.

E escuto ela perguntar:

Mãe, ele não volta mais?

Por quê mãe?

Não estou entendendo nada.

Sinto uma vontade louca de chorar.

Então,

Choro desesperadamente.

Volto ao meu quarto.

Meu Deus!!!

Quanta confusão...

Agora, tem mais pessoas,

Dentro de casa... no quarto...

Nisso, chega um caixão...

Põem-me dentro... aparecem flores...

Tomo então consciência do que aconteceu.

Morri!!! Estou morto!!!

...........................

II

Me lembro agora.

O carro. Um outro carro...

Um choque.

O escuro.

O vazio...

.............................

III

Mesmo assim,

Tento conversar com as pessoas,

Ao meu redor.

Gesticulo,

Chamo-as e não me escutam.

Choro então alucinadamente.

Vejo então mais uma vez,

O vulto mavioso de minha filha...

Sentadinha ali num canto da casa,

Numa cadeira, toda encolhidinha.

Está olhando para mim,

Para o meu corpo.

Vejo que rolam lagrimas dos seus olhos,

Mas elas tem um brilho especial,

De vida... de amor... de ternura...

Esta cena... me comove deveras.

......................

- IV -

Que horas são?

Não consigo saber as horas.

Já anoitece, está ficando tudo escuro.

Saio e sento mais uma vez,

No batente de minha casa,

E fico olhando o vai-e-vem de pessoas,

Vultos, num entra e sai constante.

Sentado, ali naquele batente,

Às vezes choro,

Às vezes fico num silêncio sem fim,

Às vezes não consigo ouvir nada,

Tudo,

Torna-se parte de um silêncio causticante.

.........................

- V -

Sinto frio da noite...

Sinto uma angustia sem fim...

Meu Deus!!!

Oh Deus, Por quê?!!!

O que vai ser de mim agora?

E ela?... Tão pequenina... Tão frágil...

Será que a verei novamente???

O seu pranto mistura-se ao meu.

........................

- VI -

Minha mente é uma confusão de idéias:

- Religião, espírito, purgatório, inferno...

Tudo ao mesmo tempo.

........................

- VII -

Agora, dói-me o corpo,

Sinto câimbras.

Levanto, quero sair, andar,

Mas tenho medo, não devo sair.

Não devo sair de casa,

Sinto-me seguro em casa...

.........................

- VIII -

Aparecem as primeiras luzes do dia,

Que promete ser ensolarado,

Brilhante,

Radiante.

Hoje especialmente,

O nascer do sol é visto por mim;

Como o raiar da vida.

Como o raiar da esperança.

.........................

- IX -

Chegam mais pessoas em minha casa.

Revejo pessoas que há muito tempo não via.

As pessoas entram, se aglomeram,

Ao redor do meu corpo.

Mas eu estou ali também,

Junto a todos.

Uma senhora tira da bolsa um colar,

Que identifico como um terço.

Logo, puxa uma reza.

Rezam Ave-Marias,

Credos,

Pais-nossos.

Eu lhes acompanho,

Rezo com todos o pai-nosso,

Também pudera, é a única oração,

Que sei rezar...

Me acho um herege!!!

Mas ao mesmo tempo,

Lembro das palavras de Jesus,

Quando disse aos seus seguidores,

Da importância do pai-nosso.

........................

- X -

Minha cabeça dói profundamente,

Com tantos pensamentos

Meu corpo todo dói.

Alguém diz:

Está na hora!!!

Tampam o caixão.

Olho as pessoas ao meu redor.

Muitos choram...

Tento consolá-las...

........................

- XI -

Mais uma vez,

Vejo agora nitidamente,

O rostinho de minha pequena flor...

Triste... desolada...

E o seu rostinho angelical,

Tem profundas olheiras...

Hei!!!

- Papai está aqui!!!

- Junto de você ... por favor,

Não chores...

Não me faças sofrer mais,

E perdoe-me,

Por fazer você chorar.

Mais uma vez,

O meu pranto retorna.

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- XII -

Saem todos.

Estão me conduzindo.

Eu lhes acompanho à distância.

Uma mulher, no meio da multidão,

Entoa um canto, outros a acompanham...

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- XIII -

Alguém se aproxima de mim,

E me pergunta:

- Filho, por quê ainda estás aqui?

Eu me espanto!!!

- Desde ontem, você é a primeira pessoa,

Com quem consigo falar,

Que posso ver nitidamente.

- As outras, essa multidão,

Não me deu nenhuma atenção.

Percebo que é um senhor de meia idade,

De onde é que o conheço? pergunto a mim mesmo

Acho que já o vi em algum lugar.

E ele, carinhosamente,

Segura firme na minha mão,

Dá um sorriso radiante,

E me diz com voz suave e pausada:

- Vem meu filho,

- Vem comigo...

Lúcio Astrê
Enviado por Lúcio Astrê em 15/01/2007
Código do texto: T347758
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