A SOMBRA

Sou o que sou e não o que gostariam que eu fosse. Não sendo assim, ter-vos-ía de contar essa história...

Parte 1

Uma lágrima tocou tua pele, então me escondi na beleza do teu lindo rosto.

Teus olhos trajavam-se de palavras fatais e sorriam seu pranto (porque seus olhos sempre pareciam sorrir).

Parei-me a contemplá-los e a chorá-los sozinho. A noite chegava e a lua se calava no Céu. O silêncio me citava palavra sem pensamentos e eu te observava. Tentei calcular qual número de estrelas se fariam necessárias para ser tão insigne, ou cotejar-se à beleza que existia em teu vago transpor, na beleza dos lindos olhos teus.

Chorei tuas preces. Cantei em teus cantos os versos da tristeza do teu amor.

A vida de minh`alma se rasgava a desenhar os roteiros de cada aurora, de cada noite estrelada, de cada pôr-do-sol.

E as coisas naturais eram as minhas "coisas", e as vidas das vidas, eram a minha "vida", naquele jeito poético que torna cada momento ao poeta como se não houvera sido.

Talvez porque o tempo não existisse para o poeta, e fosse apenas a vida de uma sombra. Talvez porque a vida do poeta fosse apenas a sombra de um tempo, de um tempo atemporal como os instantes que se perpetuam à sombra de féretros espectrais duma sorte de ar que não sustenta o vôo dos pássaros em seu ruflar...

Eu chorei e perguntei-me: porque chora minha alma o choro que se oculta no sorriso deste lindo olhar. Ah, quem foi que te desenhou assim? Foram as mãos ou foi o resto?

Chorei. Talvez porque tudo seja poesia, e eu apenas sombra.

E cada palavra que encontra teus ouvidos não me encontra a mim mesmo.

Talvez porque de um tanto estar só, passei a questionar-me, pensando-me eu "dois".

Pois talvez seria poeta e sombra de poeta, vida e coisas da vida, sonho e arte, que se desmancha como a tinta fresca que escorre sobre a tela a destruir a paisagem. Ou talvez estivesse atrás daquele borrão de arte, gritando palavras de amor aos ouvidos sensíveis.

Mas talvez ainda, não existisse nada mais que sombra. Nada mais. Mas, se fôra sombra, como não existiria poeta? Porque todo sonho só existe mediante seu sonhador.

Ou seria possível que os sonhos pudessem existir sem necessariamente haver um que o sonhasse? Pois sem vida na Terra para a presenciar, não existiria de qualquer modo a Terra?

Ah! A vida de minha alma certamente te ama ou te amou...

Ou não choraria a lembrança dos vivos, pois aos mortos, o verme a todos já os devorou.

Certamente que serei eu um louco. Todavia, se for louco, serei homem e não pensamento...

Gentil senhorita... Choro tuas lágrimas e visito teus sonhos. Mas talvez eu seja sonho e não gente, e loucura e não louco...

Sabe, senhorita, vou andando, eu, a sombra, sem saber-se o assombrador.

Porque é tão vazio e deserto sem você aqui, que seria impossível que minh`alma fosse algo maior que este sonho, que de súbito, um sonho sonhou...

Parte 2

Verdadeiramente, senhorita, acho que sou o artífice de todas estas coisas. Sim! Um artífice esquecido de tudo o que sonhou: eis aí que lembro tudo isso que fiz.

Chora a tua beleza e descansa na rede entre as árvores de uma noite qualquer, cujo momento eu mesmo planejei.

A lua repousa seus mistérios enlutados, e todo meu sangue jaz calado num pulsar contínuo, sem aquela intensidade de um coração apaixonado quando vislumbra seu amor.

Pois que sou sombra e não gente (talvez) aquieta-me observar-te deitada na rede, e aquele que talvez seja eu, já que me perdi do poeta, vem vindo, vindo a encontrar-te. Sua barba é bem aparada, suas vestes de puro linho e carmesim, traz em si o calor da tarde, mas seus olhos, seus olhos você não os percebe... Como são penetrantes e parecem malvados seus olhos, num sorriso que parece reunir toda falácia e garbo do Universo, porém suas palavras são belas e gentis...

Porque choras, jovem querida? Porque te cansas, jovem amada? O que houve e o que se passou?

Ah! Debaixo da sombra daquela árvore eu o vejo (a mim mesmo) te beijar o rosto e penso comigo: como podem separar-se as ações dos pensamentos, pois que aqueles olhos cruéis certamente são meus, mas separam-se os meus atos dos meus pensamentos, que aqui num canto da mente, observa-me a dizer coisas distantes, que te fazem sorrir e chorar.

E como estava eu enlouquecido a vigiar-te sob esta árvore, eis que chegando, acosto-me sob a soberana de pétalas avermelhadas, e não havendo ali luz, não sei mais se existo ou se existo ainda misturado a algo maior. Mas, não teria eu sido um sonho, um momento angustiante, que num sonho, sonhando se sonhou?

Olho para a casinha distante da rede e caminho uma estradinha de folhas. Ora, fecharei a janela da casa, pois o vento bate e porque me lembro: certamente nela meu cerne habitou.

Nunca estive tão louco, a pensar-me dois e a fazer coisas desiguais. Como pode isso, que andando pelo quintal até a varanda, a fechar a janela do quarto, ainda veja-me ali estando sob o arvoredo, dizendo palavras de amor?

Saudades... Eis a sala onde nossos beijos adornavam estrelas, querida, onde a lua um dia nos encontrou. Como está mórbida a sala do nosso amor.

Eia! Um corpo estendido acena sua morte dentro de um caixão preto, embebido na taça de vinho, cujo gole envenenado o desejo ofertou... E o terno esconde os sinais do punhal atravessado no peito, que o sangue escorrido o coveiro limpou.

Ah! Como agi mal fazendo tal coisa... Olhemos o defunto calado, inerte, o rosto gentil e amável, nem mesmo ainda a plenitude da vida gozou...

Sei! Certamente eu mesmo o matei num lapso da vida... Como posso saber do veneno, e do sangue que alguém estancou?

Ah! Fui cruel! Talvez seja este o amigo por quem choram os olhos teus, amada...

Quem me dera fosse a vida um sonho, mas se assim for, como o saberei se nunca dele acordar?

Voltarei ao jardim onde repousas na rede... Esta vida de enganos deve acabar. Fui eu, eu mesmo matei teu amigo, querida... Irás algum dia me perdoar? E se não o revelar?

Não mereço esta vida, nem mesmo esta vida rastejante de rato, voltarei e estarei comigo mesmo, e se vivo eu, um pensamento perdido, serei o pensamento que liga a mente ao corpo, serei quem sou, ei de me acabar com a fala graciosa aos teus ouvidos, fecharei a boca do que fala, ou não estão ligados à mente, os pensamentos de seu possuidor?

Minha amada, ser-te-ei por desgraça, morrerei ou serei tua dor.

Anda a minha sombra sutilmente da sala até a varanda, e ruma pelo quintal... Ó mãos destruidoras, ó vida sem pudor!

Parte 3

Sentado estou numa pequena cadeira que encontrei junto à noite e atrevo-me a falar exéquias ao meu amor.

As estrelas ínclitas e o espelho de luz brindam no Céu a desgraça. Vejo nesta luz a sombra da rede, da minha amada que chora, a luz soberana que penetra os espectros soturnos da noite, e vejo nos trajetos e movimentos, aquela que agarrada ao chão se desloca, a mesma mão que enviou o copo agora suspira no chão a imitar seu senhor.

Certamente que se os sonhos pertencem ao sonhador, a vida ao vivente e os pensamentos ao pensador, estou surpreso que ainda estando eu a retornar da varanda, aquela sombra já observa o observador.

Quem é aquela que rasteja pelo chão, se estou longe de mim mesmo, se percebo-me rastejar diferente e se mais perto estou da porta que do cruel senhor?

Não entendo... Não sou eu aquela pessoa que fala aos teus ouvidos, não sou quem encheu o copo, não sou tal senhor?

Existe destino para que ninguém o percorra, doença sem portador, existe morte sem o vivo, se é que para isso haja bom entendedor?

Morte... Morte...

Olha pra mim e me conte porque fizeste tais coisas...

Eu sou a lembrança nos olhos tristes. Eu sou o choro nos olhos que brilham, o amor que existe na flor.

Não sou dado a posturas e gestos, nem sou dado a palavras tão belas... Eu sou simplesmente um sonho, a sombra daquele que ama, a aventura dos beijos nos lábios... Eu sou o abraço incontido, o olhar perdido, a paixão infinita da vida, não apenas a frase bela, mas a verdade de quem o falou...

Morte... Morte... Quem é aquele que ali se aproxima?

Responde-me o vento: "Desejo".

Quem sou, então?

E responde o vento: "a essência do amor, todo desejo verdadeiro, com fraquezas, falhas e faltas, o cerne pela qual não há a substância verdadeira no amor..."

Morte, outra vez não me calas... "Quem seria então o "Desejo"?

Responde o vento: "A vontade de quem te amou... O desejo do amor perfeito que ela, a amada, projetou... mas o "Desejo" sem sua essência é qual um corpo sem substância, a dizer coisas programadas, coisas projetadas... palavras sem pensamentos, estar vivo, estando morto..."

Olhei mais de perto aquela pessoa que pensei ser espelho, mas que era vago como um ator... Tinha amores-perfeitos, mas eu não assim o julguei...

Voltei ao quarto a encontrar-me com o morto. Cheguei mais próximo... Surpresa! Parecia-me a imagem da minha figura, ali estendida no caixão negro, sem alma, sem vida...

"Esse era você" disse o vento. "Porque os corpos se movem frios como objetos, mas suas lembranças são como sombras, como sonhos, que não morrem jamais...

Amada, amada... Era eu isto e hoje aquilo... Por que me destruíste amada? Quem é perfeito e quem é imperfeito se existe o amor?

Amada... Seus olhos sorriem por uma estranha face da vida...

Mas seus olhos interiores choram. São eles como o assassino à porta da morte. O falante sem falas reais, que eu em vida, diria jamais.

Mas, assim sendo... "Morte, morte... Quem sou eu? Talvez um louco, talvez um sonho ou um cadáver frio que anda pelas ruas da saudade...”

Um sonho maior que a morte, que de súbito, um sonho sonhou...

Ou não. Não!

Eu sou a lembrança nos olhos tristes. Eu sou o choro nos olhos que brilham, o amor que existe na flor.

Eu sou simplesmente um sonho, a sombra daquele que ama, a aventura dos beijos nos lábios... Eu sou o abraço incontido, o olhar perdido, a paixão infinita da vida, não apenas a frase bela, mas a verdade de quem o falou...

E a moça e seu morto-vivo continuam um de pé, a outra na rede, uma na rede, o outro de pé. E um sorriso qualquer banha a saudade. Mas aquele moço, ah!, aquele moço, aquela imagem de moço que a amada desejou, esconde a força do veneno, olvida a força do sangue que derramou, pois o amado...Ah!, o amado relaxa seus pés gelados e frios na sala, aguardando a catacumba dos príncipes soturnos, acenando em seu caixão enfeitado... Porque o brilho que existia no moço, a sombra levou. A este, belos modos, a fala, os gestos. Só isso restou.

Restou, restou ao amigo, ao bom amigo que o amigo matou... Choras ainda ó querida?... Remorso? A vida daquele que realmente um surto tomou?

Parte 4

Volto ao quarto... O poeta ouve o vento narrando as palavras que a Morte deteve na vida, como provas contra seu agressor... Porém, se houver como o fará se logo será apenas pó? E a sombra num instante toma seu corpo vago e vazio...

E de repente o assassino assombra-se e anda a estradinha de folhas a visitar seu oponente...

Um nada encontra. E o féretro não se encontra mais em seu interior.

Ouço gritos. Gritos de horror. De um louco que enlouqueceu-se de um temor desvairado. Alguém levara seu morto, talvez alguém que o visse... Talvez.

E um fogo no meio da mata de repente surge... E um alguém some como cinzas incineradas na face de um ator...

A alma se desprende novamente e une-se à sombra...

Eu vagarei, cantarei pelos bosques da vida, pois que sou poesia e nunca mais poeta... Mas falarei do amor...

A sombra de ninguém. Um sonho sem sonhador. Uma triste lembrança que os olhos da maldade deixou. Mas que o outono abraçou sorridente...

E pelas canções do outono, pelo rubro pavor da primavera doente, caminha a canção, procurando um cantor...

A sombra?

Ah! Deixa-me em paz!

jairomellis
Enviado por jairomellis em 16/02/2010
Reeditado em 01/03/2010
Código do texto: T2089797
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