Olho Divino
Parte I
Por debaixo da saia da alma
Procuro as verdades de um dia
O frio sobe a espinha
E à esquina espia...
... um estranho desejo
de corromper a mim mesmo,
que um dia acreditei em promessas
- próprias –
de certezas e segredos...
perdias e escondidas
Sob a saia leve do passado.
... fugiram-se molestadas
pelo olho que não olha nos olhos
Mas que não se cansa de pecar.
A visão que tudo sente,
O ouvido que tudo toca
E que entre nuvens esconde
Seu velho rosto marcado
... leve saia do passado...
E eu.... sob a saia da alma
Recebo sobre minha cabeça
O néctar dos sonhos e da vergonha,
Da vontade e do prazer,
Do orgulho e da miséria.
Parte II
De repente, um tiro pro alto!
Assino um contrato com a morte
- súbita.
Nada tem começo...
Parte III
O cair da noite aos poucos faz escurecer as paredes, as vilas, as ruas.
Mas, num passe de mágica, faz-se luz das lamparinas elétricas.
Sãos as lâmpadas que iluminam as casas das pessoas que vivem
Respirando, caminhando, acedendo e apagando insistentemente
As luzes dos quartos, das salas, dos quartos, das salas, dos quartos, das salas...
Da sala pro quarto deslocaram-se dois amigos silenciosos
Lá chegando, sentaram-se ambos ainda silenciosos...
Olharam-se com afeto, com fome e mudos.
A amiga viúva em suspiro e coragem o olhou nos olhos e desabafou...
Parte IV
Angélica:
- Nada... Nada mais sou que uma alma viúva de prazeres
A vagar pelo mundo, desprendida de destino.
Deixo minha vida ser vivida pelos meus demônios
Que me acompanham do café até o descanso.
Amigo Anônimo:
- Queria, eu, ser poeta neste quarto
e aconselhar-te, a gargalhar, com o meu copo.
Poetas conhecem os demônios como íntimos,
Como que as loucuras não lhes coubessem no peito.
Não julgo os anjos, tão pouco os loucos.
A liberdade que ambos têm me causa inveja.
Os seus charutos me parecem saborosos,
E enquanto ao demos... têm prazer ao ver-te em leito.
Angélica:
- Nada... Nada sonho, amigo, em meu descanso.
Nenhum mísero a bailar qualquer desejo.
O corpo dorme solitário e em desprezo.
E quanto aos conselhos... obrigada, muitos tenho.
Amigo Anônimo:
- Me dá repúdio, minha cara, nossa raça;
as horas correm e conosco mal se importam.
Somos pequenos, vis, somos a caça!
Como que a razão só nos servisse pra desgraça.
De nossas vidas não lembramos nem metade
Mas perseguimos o passado como carma.
Ainda achamos que é ele quem nos ameaça...
Criamos passado sobre passado sobre mágoa.
(o Amigo acende um cigarro e toma um gole do chá)
- E os bons momentos, doce anjo, só lembramos
como tortura se, então estamos longe...
... assim...
pertos do fim....
Sem começo... Que caro preço!
Nada...
Angélica:
- Nada...
Amigo Anônimo:
- Nada, minha amiga,
tem começo ou mesmo fim.
Parte V
Eu nasço e morro,
Gargalho e choro...
... por debaixo da saia da alma.