Minha Ira e Alegria

Na escorregadia pia onde lavo minha ira

Vivem os restos imortais que, grudados às gorduras do dia-a-dia,

Sorriem para as tias com um desleixado ar de ousadia.

Ao saberem que são tema de tão livre poesia.

Mas os pontos microscópicos que emanam dos meus poros

Gritam cores saltitantes que brilham tanto quanto antes.

E mesmo que deslizem pelas mãos como sabão

Na água viva da minha pia são possantes como trovão.

Aceito o pão. Mas nego o jargão nosso de cada dia.

Pois, - quem diria? -minha ira, lavada pela água que me guia,

Surgira, talvez, da tão sublime alegria.

O mesmo jubilo que findaria essa orgia de filologia.

Mas “seria” se real fosse. E realidade não há se não

Pela ingênua fantasia – a mesma de que não abro mão.

Sairiam minhas ira e alegria a cantar qualquer refrão

Cirandando, como crianças, pelo pátio até o porão.

E o resultado já esperado de toda essa simetria

Bem poderia ser comunhão de métrica e fogosa rima

Posso, sim, imaginar quão magnífico e bom seria

Se em paz vivessem minha ira e minha alegria

Borbulhariam eternamente como uma taça de Chandon

Leves bolhas de ar infladas pelo sopro da inspiração

Explodiriam no negro céu como fogos em reveillon

Serenatas consonantais em alto e nítido som.

Lada-a-lado, as duas, marchando rumo à partida

Rabiscariam soberbas letras com nuanças de biografia.

Que, em algum final, certamente, diria minha ira à alegria:

“Sou tua mãe, sou tua filha. Não penses mais que és sozinha”.