Teogênese

introdução

no princípio criou deus os céus e a terra. no meio uma confusão. agora é chegada a hora de criarmos um novo Deus.

no ocidente moderno aprendemos que deus se manifesta no Livro. queremos tudo por escrito. pois bem decidi escrever também inspirado pelo inconsciente (coletivo?).

os artistas somos os novos sacerdotes (Joseph Campbell). nossa obra deve ser transparente ao transcendente (Karlfried Durckheim). deus não é o fim mas o meio como o olho que vê tudo menos a si mesmo (Rubem Alves). o fim é inefável. inescrevível. impensável.

teogênese é a minha pequena criação de Deus. pus no papel (bits e bytes) dezenas de anos de busca. sonho com um mundo onde cada um crie seu próprio deus. onde nos reunamos todos ao redor de uma fogueira ou uma mesa para contar estórias e nos encorajarmos. todos do mundo todo. humanos que somos.

taí.

rafael longo

primavera 2007

poemas

credo:

criam em deus

criam Deus

eu sou um com o universo

sou um com o universo

um com o universo

com o universo

o universo

universo

verso

ó

entrei numa igreja católica

não sou religioso

nem cristão

nem acredito no deus

as pessoas ajoelhadas

diante do altar

rezavam prostradas

cabisbaixas

caladas

olhei o sacrário

e vi deus abrir a portinha

e descer do altar

e vi deus vindo a mim

onde eu estava

ajoelhou-se aos meus pés

contrito

e pediu perdão por tudo

o que fez de errado

prometendo não fazer mais

ergueu-me os olhos

e o encarei

segurei-lhe os braços

e o ergui à minha altura

“tudo bem!”

sussurrei ao seu ouvido

sei que você é fraco

e tem se esforçado

para ser como eu

feitas as pazes

saímos da igreja

paramos num bar

e bebemos pinga

e beberemos outras

lhe prometi

até o dia em que

ele perfeito

possamos beber juntos

pela primeira vez

o vinho que outrora foi água

recuso-me a não crer em deus

se ajudei a matá-lo

cabe-me pois recriá-lo

só?

poeta?

coletivo?

ativismo?

deus metáfora

poesia do mundo

o além do além do além

um dia criei deus

teogênese:

não o deus mas um deus

não um deus mas meu deus

e vi que era bom

o deus que criei

e descansei

ao segundo dia

no terceiro dia

arranquei-lhe uma vértebra

e criei uma deusa

imagem e semelhança

minha os criei

e ordenei-lhes que

se reproduzissem ou

se dividissem

(que escolham

e não me encham!)

e formem tudo o que há

a partir de si-mim

estrelas e planetas

animais e plantas

o universo veio de mim

ao conhecer o bem e o mal

deixei de ser bebê

ao entender que o mal podia estar no bem

deixei de ser criança

ao perceber que não há bem ou mal

deixei de ser adolescente

ao parar de entender as coisas

deixei de ser adulto

quando os meus pais me ensinaram

deixei de ser ateu

quando conheci Jesus

deixei de ser eu mesmo

quando questionei a Igreja

deixei de ser fundamentalista

quando conclui que não há inferno

deixei de ser cristão

quando descobri a arte

voltei a ser gente

quando descobri o humano

voltei a ser eu

quando encontrei o sublime estético

voltei a ser parte do todo

quando fui além do bem e do mal

voltei a viver

quando deixar voltar

já disse meu filho pequeno comendo sushi:

“pai que bom que a gente existe!”

outrora

domingo à tarde

gravata

bíblia na mão

porta fechada

depois aberta

sofá cadeira

fala

criação queda

pecado morte

jesus redenção

justificação

salvação

ressurreição da carne

hoje sem gravata

bíblia na estante

deus sossegado

vazios céu e inferno

casados que estão

no fundo

o fervor missionário

de salvar as almas da tv

domingo à tarde

e chamá-las à aventura

de ser humano

sem deus

deus é com maiúscula

ou com minúscula?

aprendi na igreja

que o meu deus

é com maiúscula

e o dos outros

com minúscula

será que Jesus

tomou o vinho

que outrora

foi água?

ficou bêbado

com a mente

confusa e a

língua enrolada?

permitiu-se

liberdades incomuns

a um deus encarnado?

lembrou de tudo

no dia seguinte?

cogitou não cumprir

a missão?

duvidou

que era deus?

paraíso

para isso?

pára isso!

pára aí, sô...

pára! isso...

deus é pai

e pai é deus

mas muito mais

abaixo a ditadura dogmática

impressa epistolar

de qualquer fundamento

em especial a dos bentos e wojtilas

que nunca comeram seu mestre

que nunca dentaram

o cristo aramaico

que nunca tomaram

deus para dentro

fumem o seu deus

pelo amor de deus

fumem o seu deus

meu dever

viver

sem desejo ou medo

meu dever

revoltar

para melhorar

sem já ser ruim

certo do jeito que é

o mundo é

é isso

sem ação e reação

sem premissa e resultado

é

quando eu nasci

o brasil era católico

de repente os

crentes protestantes

evangélicos

dever weberiano

seguranças de condomínio

empregadas mais honestas

executivos de sucesso

políticos sujos

antes o povo era povo

e tinha cultura de povo

hoje cantam lutero

ou outro crente qualquer

e fico saudoso

das moças sapecas

de calça apertada

hoje sem decotes

não cortam o cabelo

não usam calça

e não raspam a perna

papai do céu ama muito o menino

papai do céu não gosta

de ver o menino louco

ouvindo vozes alucinado

em delírio psicótico

papai do céu quer o menino careta

limpo asséptico focado

centrado

papai do céu não gosta

quando menino fica avoado

trocando as cores

perdendo noção de

tempo e espaço

morrendo de fome

depois do passeio

papai do céu é doente

carente

quer o menino junto a si

“não vai embora menino!”

papai cuida de você

não me deixe sozinho

na entropia inebriante

do universo lancinante

papai do céu quer menino

quietinho imóvel

insípido e cru

quão doce a irmãzinha

crente

cantando baixinho

hinos em glória

a jesus salvador

na poltrona do

ônibus ao lado da minha

quão doce o irmãozinho

ateu

tocando triunfante

a nona de Beethoven

em glória aos homens

no concerto no teatro

da cidade

crentes e ateus

irmãs e irmãos

criando e reproduzindo

algo maior que

a iluminação

deus não é o fim em si

mas um meio

igual a uma pedra

uma árvore um rio

o fim é o que não é

inefável

imagens apoteose vocabular

arte apoteose divina

sol sistema solar

galáxia bilhões de sóis

universo bilhões de galáxias

bilhões de universos que são?

em qual desses céus

está deus?

acordo:

diante de mim

o universo multifacetado

desfila um a um

seus incontáveis semblantes

oxalá um dia meu rosto

meu apenas numa

entre várias revelações

meu rosto mude

numa plástica transcendental

dilacerado pelo bisturi

da estética auto-fágica

ainda assim único

trabalhado

entalhado

fruto do meu esforço

em me livrar

de mim

estava a caminho de deus

mas eu fumei um

abrimos uma roda com o espírito santo

e eu fumei mais um

agora sou onisciente

e eu sei porque

porque eu fumei um

porque eu fumei um

porque eu fumei um

como a lâmpada

está para a luz

estou para deus

acesa a lâmpada

carrega a luz

projeta-a

meu eu verdadeiro

não está na lâmpada

mas na luz

lâmpada vidro transparente

temporário receptáculo

de algo muito maior

o filamento ou o néon em chamas

a comunhão

ser transparente

à transcendência

a transcendência

em movimento

quando chegar

ao nirvana apago

e onde pensava

haver trevas há luz

e então com elas

provo plenamente

ser um

maia me obscurece

o olhar

maia me projeta

o que há

maia revela

na arte

na forma

a prova

da radiância

já vi o mundo com nojo

desprezo raiva dó

já desprezei a ordem das coisas

já não aceitei

não quis

não concordei

e o mundo do jeito que é

e é bom do jeito que é

e é certo do jeito que é

mudá-lo não

melhorá-lo

sem nunca esquecer

que do jeito que tá

tá bom

ergo uma pedra

numa mata úmida

e o que vejo

não é o anverso da

pedra

mas vejo o lado oculto

da pedra

tudo o que ela

não é e ainda bem

que não é

e aponto-o aos outros

que na ponta do meu

dedo vêem o mundo

que não é

o que antes os

mitos mostravam

hoje basta o dedo

do poeta apontar

do poeta que vê

o tudo e o mudo

e indica o que transcende

no oculto do que se vê

deus não criou o mundo

deus não criou o universo

eva não pecou nem adão a seguiu

o pecado não entrou no mundo

a natureza não provou a queda

tolice chamar a natureza de má

natural não é boa nem má

e dela brotamos dela surgimos e

nela nos dissolveremos

não há mal algum no mundo

eu não sou mal

você não é mal

o pedófilo o assassino o estuprador

o tirano o opressor o cruel

ninguém é mal

não posso

nem que queira

fazer mal algum

ninguém pode

não há queda

a natureza não se sujeita

à moral

integremo-nos entreguemo-nos

quero ver sidarta

não o gautama

mas o de hess

sentado à beira do rio tietê

marginal de são paulo

os budas sempre

gostam de rios

o rio os carros e os trens

um carro na marginal

é impermanente

a não ser quando

congestiona

o rio tietê não é

impermanente

é sim

sem trânsito

o trânsito

flui mais que o rio

nós ao volante

nós volantes

a estação de trem de subúrbio

do outro lado do rio

é impermanente

bem junto às catracas

e nas plataformas

e sidarta olha

o trânsito

o rio

a estação

e quando Govinda

olhar seu rosto

depois do nirvana

verá o nordeste

o centro

o sul e o norte

brasileiros em buda

olho pra fora e me vejo

parte de um enorme ensejo

unido e interligado

divinamente manifestado

impessoal e rico

disfarçado em forma ou estado

olho para dentro e me vejo

longe de ser íntegro desejo

enorme procissão de camadas

de partes distintas bem ou mal amadas

e não reporto apenas um eu

mas uma legião de almas penadas

fora e dentro qual o limite?

minha pele o limiar que resiste

em manter o que só no ocidente

meu ego minha alma ou mesmo minha mente

e no afã de ser indivisível

cismo-me em blocos do inconsciente

mas se algum dia um olho extra abrir

e num relance do eterno porvir

perceber que acima de sobreviver

o que está em jogo é um eterno ser

aceitar-me hoje na roda da vida

alegre e pleno no pan-resplandecer

às vezes permito-me o privilégio

de emprestar meus pulmões

a uma pedra

ela que de outra forma

jamais provaria inalar

para dentro de si

tragar e manter suspenso

sentir o cheiro das folhas

da terra seca da fuligem do ar

empresto meus pulmões

a uma pedra

sem juras

sem juros

e a vejo sorrir imóvel

sinto-a grata

por tê-la permitido provar coisas

que não cabem a uma pedra sentir

algo que só se acessa

pelo outro

que se dispõe

a transparecer

a transfundir

quantos

não se esquivam

de parecer ridículos?

custo a pensar

em qualquer papel

mais ridículo

que o que desempenhamos

diante de deus

inteligentes bonitos e sábios

no dia a dia bebês

que queremos?

ser adultos e

suportar o desespero

ou seguir crianças

e ignorar o eterno

observador?

qual o formato

do círculo cuja

ponta pontuda

do compasso

está em qualquer lugar

e a ponta que escreve

forma com a outra um ângulo

de noventa graus?

a partir do infinitésimo

acima dos oitenta e nove

outro círculo

outro plano

até chegar aos

cento e oitenta

em um ponto específico

e em um único ponto só

deixa de ser círculo

ponto que é

abstração

porque não há ponto

o ronco é a busca

do corpo pelo ar

pudesse o espírito

fazer tanto barulho

na busca daquilo

que não é

ou não tem

os deuses

viciados

na grande droga humana

dependentes

submissos

frágeis

limitados

exemplos imprecisos

metáforas

de algo além

muito maior

indiferente à humanidade

por sê-la

e tudo o mais

um dia ouvi a voz

que vinha da mata

e mesmo ouvindo

optei por não tomar remédio

ao ouvir a voz escolho:

atendo ou desprezo

não atender põe

o universo todo em cheque

não pela minha importância

pelo que posso fazer

mas pela minha disposição

e respeito ao chamado

se desprezo

o universo perde

eu é claro

e aqueles ao meu redor

e todos os que vieram

e todos os que virão

mata densa

sem entrada

escura

úmida

o melhor lugar

grato à voz

não quero o centro

quero as pontas

quero a borda

desprezo o recheio

sopa alguma

se toma pelo meio

nem pênalti

bem batido

a praia é mais bela

que o interior

porque tem o mar

na beira

os rios e os lagos

a margem

do centro para as pontas

centrípeto não centrífugo

o deus diverso está nas pontas

gosto do conflito

aprecio o novo

reconheço o poder

do diferente de mim em mim

cresci sonhando todos iguais clones de mim

destoaram decidi mudá-los

ao lográ-lo dormíamos todos

iguais pobres fanáticos

é possível amar quem me é diferente?

torço por visão que complemente a minha?

vibro quando apontado ao anverso da frente?

amo o que não sou?

sigo tão careta e preconceituoso

limitado e restrito

preso e só

mas o outro sonda sorrateiro ao redor

é forte maior que eu rompe-me os grilhões

livre permite-me ser

não o que planejei

mas o que a vida

me reservou

sou onda do mar

gota do mar

que também é mar

onde acabam onda e gota

e começa o mar?

deus é o mar

a onda do mar

a gota do mar

aponto o mar

a onda

a gota

sou onda do mar

gota do mar

eu e o mar somos um

eu e deus

fugir à loucura não há de ser

a meta de todo um sobreviver

mas diariamente acessar o insano

e uma parte do sano render

nadar no mar do inconsciente

onde submerge o doido somente

a cabeça ao menos o nariz pra fora

tragando o ar em tudo contente

viver com medo é viver ao meio

mas aceitar a vida sem receio

sempre bem-vinda alcunha de louco

ir à escola só pelo recreio

de vez em quando confrontar o vício

no dia a dia gozar seu auspício

e afrontar a decisão social

danem-se médico remédio hospício

sou uma fornalha volátil

que se auto-consome

o dia todo todos os dias

mantendo meu corpo

mantendo-me

a uma temperatura

ardidamente quente

próxima aos trinta e seis graus celsius

quando não febril

ou ébrio

calor

maior que o das árvores

da grama da flor

mas infinitamente menor

que o das estrelas

com quem no entanto

freqüentemente

me considero em constante

co-combustão

depois que sonho arrazôo

que cada parte do meu sonho

é eu mesmo projetado

parece alguém

mas sou eu de outra forma

temo um monstro

sou o monstro que sonho

desejo a mulher

sou eu mesmo a mulher

mundo onírico ego dividido

estranhamente viro tudo

o que vejo de olhos fechados

mundo desperto

vivo iludido

com o ego

é eu e eu meu ego

oxalá eu e ego

sonho e despertar

e o que creio

não ser eu ou ego

unamo-nos

plenos em si

terra desolada árida vazia

terra lugar imutável por dentro

personagens não cientes de nada

vivemos no inferno não no purgatório

almas intrinsecamente ligadas ao seu pecado

presas para sempre às suas próprias limitações

logo perdidas

oxalá presentes no purgatório

onde os moldes se dissolvem

onde há mudança processo ação:

o purgar dos diversos estados de orgulho na ignorância

que nos impedem às próprias almas de achar

sua própria verdade seus mais profundos anseios

deus

mundo atual sem tal fermentação

exceto em poucos

terra desolada

pessoas prolixas complacentes

bando de gozadores relaxados

que não gozam só fingem

múltiplos orgasmos

singularidades auto-reclusas secas

agitadas sozinhas ou cercada de seus pares

sem transformação dentro

mantendo a todo custo a velha aparência geral

de convocação à inocência

de sua própria chatice e banalidade

único arado a remexer os torrões secos: arte

única força hoje disponível ao oeste da pérsia

capaz de nos mudar por dentro

no meio do mundo onde só mexemos por fora

às custas de muita plástica e maquiagem

e roupas e carros e casas

o que está em jogo é o fim da coerência

se estou certo da minha verdade da verdade

por que ouvir quem me fala de outras coisas opostas?

por que tolerar?

o artista hoje fala de outras coisas

o que os místicos outrora diziam

aponta ao transcendente ao não-ser ao não-é

numa palavra: opõe

se opõe à terra desolada

se propõe a cultivá-la nem que seja

com sua porra ou óvulo descartado no fluxo

como semente

e seu sangue como irrigação

índios pré-descobrimento

tomavam ayahuasca

e viam coisas

chegaram Cabral Caminha

e um padre que-não-lembro-o-nome

e fizeram missa

transubstanciação

os índios comeram a hóstia

e tomaram do cálice

bateu?

perguntou o cacique ao pagé

não

nem para mim

difícil entender

a religião sem graça

destes brancos tontos

que juram estar comendo carne

quando estão a comer pão

e dizem tomar sangue

quando bebem suco

e se dizem salvos

sem nunca ficar loucos

e se não for o que

penso que sou?

que venha o outro

que me tenha elaborado

montado distinto do que

jamais pensei ser

um possível do contrário

do que pensei ou quis ser

liberto enfim do que pensam que sou

e do meu plano de mim

fim