Dia de chuva

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Era dia de chuva intensa. Relâmpagos bombardeavam o topo da serra deixando claro o contorno irregular do Alto do Caboclo. A água invadia generosamente suas lembranças. Havia ali o traço certo da saudade, retalhos de um tempo que compunha a magia do momento.

Repousava dolentemente na rede que armara no alpendre. Leves balanços faziam-na relembrar a brisa que em outras épocas lhe sussurrava segredos e provocava-lhe sorrisos. Sentia-se suspensa. Tinha receio de emergir desse mergulho, desse torpor idílico que vivenciava ao som da chuva.

Percebeu que se entreabria ali uma passagem secreta através de uma nesga de tempo.Uma curva em que derrapavam os sonhos e os trazia de volta para serem apreciados. Pôs-se a falar baixinho como se cada sílaba proclamada lhe escapasse prudentemente por entre os lábios, por entre os pensamentos, induzindo-a a um estado de puro lirismo. Sentia certo desconforto inerente aos seus apegos demasiados à precisão, à clareza e com ela, à claridade. Sentia as palavras brotarem uma a uma, todas elas entrelaçadas de luz e de sombras. Todas vincadas de contradições e de certezas. Em todos os tons e nuanças.

Suas lembranças eram agora feitas de som, de ritmos, de poesia. O gotejar do tempo, compunha uma sinfonia inédita onde o espaço se desdobrava. Sentia prazer em manipular essas idéias que lhe vinham através da simetria sonora da chuva. Queria associar as cadências a cada palavra que dizia, a cada sensação despertada.

As palavras a acossavam. Eram redundantes e claras. Simétricas e profusas. Sabia que elas representavam imagens vívidas do seu passado, do seu presente, do seu momento... Palavras que nada explicavam, mas que pareciam nunca parar de querer dizer-lhe algo. Eram manchas gráficas imaginárias estendendo-se nos seus sentidos. Presença, espaço, tempo.

Lembrava-se da origem de tudo. Da luz escondida no versejar dos sentimentos perdidos, da dimensão da dor... Mas isso ficara relegado ao passado. Perdia-se nessas gotas infinitas de chuva que lhe levavam as dores, que lhe lavavam as tristezas. Que lhe traziam de volta essa leveza e a sensação de que tudo de alguma forma se torna poesia. Que cada dia de chuva a relemos mas a cada vez a sentimos  de forma diferente deixando a mágoa na obscuridade.