FRAGMENTOS E CISMARES 19

 

                                 [DESCORTINAR-SE]


   Aliviada confesso: depois de muita contemplação, mistura de estado zen e paranóia, peguei pelo pé o que estava sentindo e comecei a me escarafunchar por dentro.
Mal podia crer no que via... Sobre ruínas, o céu coalhado de estrelas permaneceu calado para não anular aquela fantástica sensação de que alguma coisa se mexia dentro de mim. 
Espantoso era eu nunca ter percebido aquilo antes, pois era certo que sempre estivera ali... sempre... visível mas imperceptível... a vida palpitando em forma de beleza, sempre olhando para fora, prisioneira de uma nuvem que a gente identifica mas que não tem a menor idéia do que seja. 
Uma fantasia talvez. Alucinação, provavelmente. Uma paisagem mutante.
    Abotoei devagar as decepções antigas na casa imaginária de janelas negras, aos escombros, e me perguntei se aquelas estrelas todas, que salpicavam piscares, não seriam os desapontamentos que bati de cima dos ombros e que como partículas de poeira subiram ao céu e se transformaram.
A gente pensa cada coisa!
Olhos a se mostrarem e a me espiarem. A metamorfose da angústia  costumeira em harmonia desconhecida.
    Como esperado (ah... por que insistimos nas experiências que nos esfacelam?), minha impaciência, a urgência em me perceber normal, fizeram com que eu rasgasse a fantasia da harmonia.
     Fechei os olhos, respirei apressadamente e de súbito a estranha simetria se extinguiu. 
Necessário seguir. Nem era noite, era dia. O céu estava cinza, poluído, mal-humorado. Normal.
     Fechei o apartamento e desci.
O barulho do trânsito perpassou-me de alto a baixo como um colapso. 
Olhei para os lados e fui andando, fazendo parceria com a vida. Do jeito como ela quer seguir. Revelando e ocultando à revelia, deixando-me a tarefa de juntar dados, alinhavar vestígios, colar cenas.
     Talvez... É, pode ser... quem sabe ainda aconteça algum entendimento, uma percepção melhor.




 

KATHLEEN LESSA
Enviado por KATHLEEN LESSA em 09/06/2008
Reeditado em 27/06/2012
Código do texto: T1026772
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