Se alguém gritasse...

Covardia! Era a única coisa que reinava na mente do enfermo desgovernado que me tornei.

Não existiam derrotas e nem vitórias, as chances que eu tinha de cantar e voar livre pelas ruas, caíam ao chão quando eu enchergava teu corpo esguio dormente na rua, procurando as estradas que eu sabia que jamais encontrarias.

Sorvia o mate adocicado que despencava da tua boca cada vez que me dirigias a fronte e mesmo sem saber eu era só um fantoche inabitado suplicando por um pouco mais da tua atenção. E eu que achava que todo o controle estava em minhas mãos, que podia vencer o destino de pertencer a ti, calçar as entranhas de alguém que abandonou a própria sorte e partir.

Não pude conviver com a tua força. Não pude desistir da tua humanidade... Só restou-me a vaidade quase nula que ainda tentava respirar afundada no meio de tantos amores inúteis e tantas amizades fúteis que tinha alimentado, e agora com a tua presença tinha a plenitude certa de ser quem eu era e me vi simplesmente solta no vazio, tentando encontrar na tua presença a minha e no teu calor a esperança. Que tola! Não percebi que eu era a caça.

Foi aí que eu vi na transparência das águas do rio, o vermelho sangue desabrochar. Era como suor escorrendo rio abaixo, tornando a vida mais salgada e armando os meus inimigos com a força infinita do não-amor.

Percebi cada gota rubra adormecer meu peito e isolar ainda mais minha solidão. Não sabia que o sentido estava inverso e que o rio corria vitorioso pra me confundir, fazendo meus pés correrem até que os restos de galhos estivessem grudados em suas polpas e que o sangue, tomado pelo barro, ardesse nas minhas entranhas.

Eu era feliz assim. Perseguindo o nada...

Querendo encontrar no vazio alguma nutrição ou um resto de vontade, mas só via medo e culpa transbordando dos teus olhos.

Não planejei, nem ao menos cogitei, a idéia de perder pra ti o amor que tu me tinhas... Era quase como um sonho, um pesadelo inconcebível, ver-te longe de mim. Mas a sabedoria me traiu e a única coisa que pude enchergar foi teus pés correndo contra mim e ultrapassando a linha do meu lar. Não pude conter as gotas que despencaram de repente dos meus olhos, assim como não pude deixar de notar a tua satisfação ao pisar novamente na grama fresca da liberdade.

Não foi por maldade!

Foi por amar tão loucamente o jeito como tua boca gesticula cada mínima silaba, foi por devotar o teu perfume cítrico, beirando um aroma de bergamota num fim de tarde inverneira. Foi por perder o fôlego a cada olhar que me davas com aquelas duas esferas de um negro profundo e arrebatador, foi por tremer a cada aproximação casual das nossas mãos e saber que não passavam meros acidentes de percurso.

Não foi por vaidade!

Foi a complexidade das tuas formas cravadas nas minhas pela manhã e foi também a minha vontade de acariciar cada milímetro da tua pele macia.

Foi o teu cabelo descolorido, planando no vento que insistia em entrar pela janela, que me fez perder a sanidade e foram também os teus beijos que entorpeceram minhas idéias deixando o corpo sem ação.

Que tola eu fui, não ouvi tua prece matinal, não vi as tuas mãos se perderem das minhas, não quis desejar outras e nem ao menos sonhei com a despedida.

O tempo rápido e fulminante roubou-te de mim.

Jogou-me aos burgueses famintos por inteligência e deixou-me lá, vegetando, tentando burlar as suas idéias imorais disfarçadas de liberdade. Porque será que eles não entendem que liberdade não existe... insistem em convencer o mundo de que ser livre é ter condições de vida e dar a ela o destino que quiser, mas não sabem eles que liberdade é apenas um sentimento e não um estado. Liberdade é se permitir pensar e questionar o que lhe é imposto e poder escolher influir ou não no mundo... liberdade é tão somente decisão... é sorver cada minúsculo grão de informação, processar e aí sim exercer a decisão livremente. Se vai se levar em conta circunstâncias ou não, vai de cada ser vivente escolher, mas mesmo com circunstâncias a liberdade pura e nua continua ali, encravada na nossa decisão!

Como todos sabemos, cada ato nos impõe algum tipo de retalhação, e não seria diferente com a liberdade... a partir do momento que se decide, se assume o risco das conseqüências! Assim como eu escolhi amar-te e assumi o risco de perder-te um dia e sofrer. Sim! Escolhe-se amar ou não! Por mais que digam que o sentimento governa o amor, é mentira! Não creias nisso querida! A vontade governa tudo!

Não se pode torturar-se a menos que se queira! É uma necessidade inata de ainda fazer parte do que já não lhe pertence... É simplesmente resolver as idéias e perpetuar a dor de já não se ter um resultado.

É só uma vontade de sofrer pra tirar a culpa dos próprios ombros...

...

Eu fui caminhando lado a lado com a fé dos meus pais. Provoquei as idéias e destrui os sonhos dos meus amigos, trançando as histórias que vivi e que inventei. Achei que assim eles seriam poupados dos erros da vida e poderiam ficar libertos de todos os arrependimentos... Foi só uma ilusão... Parece que a vida sempre se encarrega de inventar novos jeitos de sofrer e assim as lembranças de felicidade perdem-se ou recuam pro mais fundo dos abismos da nossa mente.

Copiei os estilos... Admirei as idéias... e no fim só o que deixei foram as poesias e os livros decepados na estante, transbordando os restos de algum sabichão teimoso.

Nossa força era a janela entreaberta que deixava o cheiro de bergamota escapar para os narizes indiscretos dos vizinhos. O nosso cobertor era a inveja dos que não sabiam o que o amor nutria e viviam cercados de vaidade, medo e decepção. Nosso carinho era feito de silabas, percorrendo os poros, despertando os sentidos do sentir mais do que ser. Nossa luz era o reflexo que pendia dos nossos olhos com a proximidade do toque, pareciam esferas a delirar pelo quarto buscando a origem do que não se via e evitando a lógica de sentir.

Éramos pó borbulhando pelas paredes desnutridas, procurando nas frestas teias aonde pudéssemos nos prender...

Veio o vento e a tormenta e o pouco do que restava de nós apagou-se como simples vela padecendo ao sopro da vida.

Não éras mais um caminho e a lembrança que tentei nutrir jazia nalgum espaço abstrato e insensível daonde eu jamais consegui tirar um gosto doce sequer. As risadas perceberam o seu insentido e partiram pra outro chão, atrás de um pouco mais de fé no mundo. Eu não perdi a saudade, mas perdi o medo... foi-se ele junto com os teus sapatos estranhos que cercavam-me no quarto azul.

Não tinha mais um numero, não era um fôlego nem uma mariposa, simplesmente afogava-me pelas poças do sentido que os outros me davam... e quase sempre era vazio e desespero que esperavam-me no fim da noite.

Aquela nossa janela, agora fechada, encheu-se de mofo que tentei insanamente tapar com a inveja que nos cobriu nos instantes pueris. Vi cada pedaço do quarto desmoronar em minha cabeça pouco a pouco e os gestos que sempre usava já não impediam o mundo de me entender. Virei carcassa nua perambulando pelas ruas, transparente e consolada, nutrindo a semente dalgum corpo indiferente que me visitava noite após noite sem saber que o tempo não refletia em mim, passava soturno e cabisbaixo frente ao meu pecado.

Sorvi o ego dos imortais e aprendi que mesmo os que permanecem viram pó e fogem das nossas idéias com o tempo. As palavras dos que dedicaram sua vida a vida e a entender o que pensa um vivente não esperam a compreensão de quem as lê. Não existe tal compreensão no mundo, ninguém se compreende mais, ninguém se ama, ninguém se perde ou se acha, eles nem ao menos se esbarram. Caminham enfileirados e cruzam quase que hilariamente nas esquinas sem um toque sequer, sem sentir o cheiro um do outro, sem ofegar, sem parar... sempre indo e indo. "Sempre em frente, sem olhar pra trás", é como se alguém gritasse!

Não se percebem as mutações nem as mudanças, não se enxergam os corpos nem os rebentos abandonados. Não se tem vontade nem saída, não se cala... não se fala... se morre, se mata, se acaba com tudo.

Pra que ter vontade de existir?

...

Não sabia responder até agora, mas a idéia de exalar os meus pesares responde ofegante "pra viver e gritar, sem ter medo do que possa parecer irreal e sem saber o que é realidade. Viver com o peito aberto e feliz, pra que o ardor possa brotar insaciável dos meus poros!"