Sem compromisso
Gosto de mim quando os bem-te-vis cantam na minha rua e eu escuto.
Gosto de mim quando o dia chega de mansinho e a vida parece leve, pipa no ar, brisa no cata-vento, assovio cheio de bossa nova prometendo luar.
Gosto de rosa chá, pétala de cor saborosa, matéria de vida, coisa fina luxuosa.
Gosto mais ainda quando, sem pressa, o que me atravessa no espelho é um jeito de olhar diferente, fingindo ausente, mas de tão perto chega a tocar displicente um sentimento mudo que começa a falar... e fala pelos cotovelos qualquer coisa que traga fumaça, neblina, aragem, viração de tempo que sem compromisso aceita a palavra que quer delirar. Porque o delírio é febre de menino e menina que passam por onde nascem as cores do arco-íris na terra do nunca cheia de afeto e fortuna e a gente nem sabe onde vai dar. Gira e roda os ponteiros gigantes de um relógio suspenso onde mora um cuco maluco vestido de rei com manto de asas, e pia prá chuva, pia pro sol, pia estrelas que caem nas mãos de quem sabe pegar, e tem mira pro arco e prá flecha, olhos de ver no eclipse a lua irisada deitada na água de uma lagoa de costas pro mar, tem sorriso de gato em telhado de vidro, assovio rasteiro, coisa que vem e que vai, que traz e que leva prá longe prá perto o que não se sabe ao certo o gosto que tem... mas gosto quando o delírio faz piar colibri, andorinha, qualquer bem-te-vi que me faça sentir que eu bem-que-te-vi por aqui, passando na minha rua onde o cheiro da chuva vem da terra que chora sob o asfalto onde trinca a vontade de brotar um verde cor da esperança que teima em entrar sorrateira pela janela onde arrisco o olhar que quer ver o que há por trás dos prédios, dos postes, dos fios que cruzam, que cruzam, que cruzam... e desequilibram qualquer lógica que coloque no tempo a hora certa de acontecer, porque só aconteço quando te sinto gosto de vida, te escuto cores, te vejo canto, te toco vento e espero lento o teu despertar.