Dedos e pés

Seus dedos arrastavam uma leve poeira enquanto procurava seu velho disco na estante da sala. Ela tinha uma radiola velha e era nela que ouvia as músicas que amava. Não era difícil encontrar. Tinha poucos. Naquela tarde, como das outras vezes, ela tomou o disco nas mãos cuidadosamente. Embora velho, sempre fora muito bem guardado e estava com poucos arranhões. Pegou-o e o levantou na altura do rosto, como se tivesse nas mãos um espelho. Aquele plástico preto refletia alguma coisa, uma imagem borrada, mas não sei se ela buscava o desenho de seu rosto. Naquele dia, acho que buscava no reflexo do disco alguma lembrança, algo mais profundo. Deu um sopro leve sobre ele para que saísse um resto de poeira e abriu a tampa do som. Sua mão esquerda tremia um pouco quando o posicionou para tocar. Puxou a agulha, era a faixa três. Ela sabia de cabeça. Olhou para as janelas queestavam abertas para uma tarde luminosa e fria, daquelas de inverno ameno. O céu estava claro e algumas crianças corriam na rua. As pessoas resolviam coisas lá fora. Muitas, estavam ocupadas com coisas sérias. Mas aquela mulher não tinha, naquele dia, problemas a resolver. Quis então dançar. A música começou a tocar. Passos começaram a correr no centro da sala. Movimento leve de pés soltos ao ar. Abria os braços. Rodava. Colocava as mãos sobre o peito, uma sobre a outra, e depois as estendia, como se estivesse oferecendo ao mundo seu coração. Fechava os olhos. Os lábios riscavam um leve sorriso. A música, que lhe penetrava a alma, roubava-lhe o peso do corpo. Então, não havia mais peso. Não havia mais corpo. Apenas uma mistura de sons, sensações e lembranças que decidiram dançar juntos. Aqueles sons...aquelas memórias...Ela não estava mais ali. Estava num outro lugar, num outro momento, onde tudo acontecia como deveria sempre ser. Aquela música tinha algum poder. Ela não sabia qual era. Só sabia que quando a colocava, se sentia mais leve, não pensava em mais nada, apenas fluía. Minutos depois, um barulho forte veio lá de fora. Foi quando ela começou a sentir sua respiração. Estava voltando e já sentia a pele transpirar. Vagarosamente, foi abrindo e correndo os olhos pelas paredes amarelas da sala como que buscando algum vestígio do lugar onde estivera. Mas tudo estava como antes e, estranhamente, não estavam dançando feito ela. Porque aqueles objetos sempre estavam parados nos seus lugares? Será que não sentiam vontade de dançar também? Foi parando, parando...parando. Guardou aquele disco por muitos anos. Sem aquela música, sua existência seria incompleta.

Josué Mendonça
Enviado por Josué Mendonça em 27/07/2008
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