Prelúdio

Entro dentro do medo. Da noite, estas trevas profundas insondáveis. Há, entre mim e o nada, ou entre mim e o sempre, um interlúdio de notas doces e suaves. Paro ouvindo arrebatado. Fosse triste, meu coração provavelmente alegrar-se-ia. Mas ocorre que é alegre, faz morcegos chilrearem e estes esvoaçam meus pensamentos sinistros. Estou contente, dentro da cor escura, a galgar sílabas desprendidas das estalactites. Concreção sonora que meu coração habilmente assimila, e me embalo cirandando pelos infinitos desse terror agradável. Sim, é angústia que voa domada. Talvez fosse eu surdo pro mundo, pros homens, mas, para a natureza, meus ouvidos tecem epifanias sucessivas que se transformam em canções amolecidas – meu interlúdio dentro de mim, e do medo. Me infinito.

Cores escuras são estranhas. Refiro-me a todas tonalidades do negro: vermelho-escuro, verde-escuro, e o próprio preto, senhor absoluto das cores em questão. Sim, é estranho, é anulação, é parcimônia destrutiva. Raramente cores escuras serão agradáveis, mas terríveis monotonias do terror, dores extremas quietas, causando medo a nós quando crianças e mesmo depois de adultos as evitamos, essas escurezas profundas laceráveis. Entretanto, quando estamos dormindo, imbuídos em sonhos densos, o preto da noite é dia para nossos sonhos, de olhos fechados, subconsciente trabalhando. E há, inclusive, belezas. Claras belezas transparentes, que a mim são sempre preto-e-brancas que aparecem nos sonhos. Dentro desta gruta, espécie de caverna enfeitiçada, a cor toca a noite; o interlúdio – música tenebrosa e alegre. Se repararmos pacificamente em nós mesmos, poderemos esboçar pequenos sorrisos de contentamento simples. Agora, sim, nós entramos dentro do medo. Por que você não segura minha mão com força? É pedir demais? Eu tenho medo destes miseráveis morcegos que não me deixam escutar com brandura o que é quase divino, cântico celeste e matrimonial. Vamos matá-los um a um, nós podemos, temos armas em punho, e alguma vontade de sermos silêncios grotescos. Que amam. E, lentamente, começamos a devorar asas pretas de morcegos que arranham nossas gargantas secas. Logo nos habituaremos a essa heterofagia ritualística de cá, de dentro, que penso ser coisa muito normal e bonita. Devorar asas negras com alegria sustentável.

Toda essa rusga negra será vomitada pra fora, quando enfim o prelúdio terminar. Tenho certeza disso. E, depois do interlúdio, que sucederá o prelúdio, estarei enfim liberto destas algemas pegajosas. Será a aleluia – libertação sublime e única. E sentirei fome, muita fome. Serei criança abandonada, nua, e com fome. Sirva-me o leite materno seu, com doçura e acalento. O de-dentro de você. Sem seus cuidados, pois, eu estou perdido em selva áspera de desejos reprimidos. Entenda isso, pegue-me, leve-me daqui. O interlúdio terminou, já devoramos todos os morcegos, o momento excelso terminou, agora já sou criança branca em seus braços. Leve-me daqui, por favor. Para lá de onde é possível te amar.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 12/09/2008
Código do texto: T1173858