Eu me demito!

Prezado(a)s Senhore(a)s,

Venho por meio desta, apresentar-lhes o meu pedido oficial de demissão.

Resolvi que quero voltar a ter a alegria de viver e as idéias de uma criança de, no máximo, oito anos.

Quero acreditar que no mundo ainda há pessoas justas, honestas, boas e felizes.

... quero acreditar que tudo é possível, que os finais felizes das estórias e dos filmes podem acontecer na vida real também.... Quero que as complexidades da vida passem sem ser percebidas por mim...

... e quero ficar encantado com as pequenas maravilhas do mundo. Quero de volta uma vida simples e sem complicações desnecessárias.

... quero ver flores mágicas ao olhar para dentes-de-leão, quero oferece-los às pessoas, soprar suas penugens e pensar em um desejo , ao invés de ver apenas ervas daninhas que invadem os jardins. Quero poder sorrir de volta quando vir um mendigo sorrir para mim, ao invés de me afastar por ver uma pessoa suja e com mal cheiro, que só quer o meu dinheiro.

... quero sentir as batidas das músicas que gosto quando ouvi-las, quero canta-la e dançar, e quando não souber a letra, quero cantar do meu jeito sem me importar se está certo ao invés de me sentir sem ritmo e simplesmente sentar e ouvir. Quero fechar os olhos, abrir meus braços e me sentir voado quando o vento vier de encontro ao meu rosto, ao invés de me esforçar contra ele, sentido-o bagunçando o meu cabelo e me empurrando para trás.

... quero poder fazer uma prece sincera antes de dormir dizendo: "Olá Deus! Obrigado pelas minha coisas, pela minha casa e por meus amigos. Mantenha os sonhos ruins afastados essa noite e, por favor, e eu ainda não quero ir para o céu, eu sentiria muita falta da minha mãe, do meu pai e das outras pessoas que também amo", ao invés de dizer "Tu" e "Vós" e me conceda isto ou me dê aquilo.

... quero ver represas para construir, rios para cruzar e bixinhos para brincar quando avistar uma poça de lama ao invés de dar a volta e ver somente sapatos enlameados e prováveis tapetes e sofás sujos.

... quero apreciar cada uma das pequenas coisas da vida e um dia olhar para trás e descobrir que eram grandes coisas...

Estou cansado dos dias cheios de computadores que falham, das montanhas de papel, das notícias deprimentes, dos acidentes, mortes, corrupção, mensalão, deputado isso, senador aquilo, contas pra pagar, resultados corporativos, números indicadores, relatórios analíticos e sintéticos, fofocas, calúnias, inveja, doenças, pessoas irritadas que torcem a cara sem antes ouvir, o ter sempre prevalecendo sobre o ser, e a necessidade de atribuir um valor monetário a tudo o que existe. Não quero mais ter que pedir empréstimos e inventar jeitos para fazer o dinheiro chegar até o dia do próximo pagamento.

Não quero mais ser obrigado a dizer adeus à pessoas queridas, e, com elas, a uma parte da minha vida. Quero ter certeza de que Deus existe e que está sentado no céu sentado em um enorme sofá colorido comendo nuvens-algodão-doce, e de que, por isso, tudo está como deve ser neste mundo. Quero ir à pizzaria da esquina, e achar que é melhor que um restaurante cinco estrelas. Quero poder brincar com o garçom e chama-lo pelo nome ao invés de dizer: "Psiu! Venha aqui!". Quero visitar os parques da pracinha ou de diversão, e continuar a achar que tudo aquilo é de graça e para sempre.

Quero viajar ao redor do mundo no barquinho de papel que eu fizer e navegar numa poça deixada pela chuva. Quero jogar pedrinhas na água e ter tempo para olhar as ondas que elas formam.

Quero achar que as moedas de chocolate são melhores do que as de verdade, porque podemos comê-las e ficar com a cara toda lambuzada. Quero poder lamber a tampa do iogurte na frente de todo mundo sem nenhuma repreensão. Quero acreditar que dinheiro é só mais um pedaço de papel como outro qualquer e que, não merece a importância demasiada que se dá a ele. Quero ficar feliz, quando amadurecer o primeiro cajú ou a primeira manga, quando a jabuticabeira ficar pretinha de fruta.

Quero poder dar saltos de alegria quando a chuva começar a cair e, de imediato, com largo sorriso estampado no rosto, sentir cada gota tocar o meu corpo.

Quero acreditar que o melhor carro que se pode ter é aquele carrinho de plástico que faz manobras incríveis. E que a melhor casa é aquela feita em cima da árvore.

Quero crer que a melhor roupa para sair é aquela em que eu me sinta bem e possa me sentar e encostar em qualquer lugar sem preocupações ou se ela é adequada para o ambiente.

Quero poder passar as tardes de verão à sombra de uma árvore, construindo castelos-fantasia no ar e dividindo-os com meus fieis cavaleiros imaginários. Quero imaginar que é possível mudar o mundo vencendo os moinhos de vento e defendendo os fracos e oprimidos.

Quero visitar o pequeno asteróide B612, e ajudar cuidar dos baobás, dos três vulcões e da bela rosa vermelha, e de lá, ir para qualquer lugar da galáxia pegando carona numa calda de cometa, pela Via Láctea, numa estrada tão bonita, bricar de esconde-esconde numa nebulosa e voltar pra casa num lindo balão azul.

Quero poder continuar a sonhar que Peter Pan existe e que me levará para a Terra do Nunca todas as noites porque lá, no final das contas, o bem sempre vence e todos vivem como crianças para sempre. E caso aconteça alguma coisa, não há porque se preocupar, é só usar o pó de pirlimpimpim e tudo voltará a ser como era. O velho Capitão Gancho será sempre para nós uma boa diversão e não uma ameaça, pois tudo é possível na terra do faz de conta.

Quero voltar a achar que chicletes, doces e picolés são as melhores coisas da vida.

Quero que as maiores competições em que eu tenha de entrar sejam um jogo de bola de gude ou uma pelada de futebol...

... Eu quero voltar ao tempo em que tudo o que eu sabia era o nome das cores, a tabuada, as cantigas de roda, a "Batatinha quando nasce", e a "Ave Maria", e isso não me incomodava nadinha, porque eu não tinha a menor idéia de quantas coisas eu ainda não sabia.

Quero voltar ao tempo em que se é feliz, simplesmente porque se vive na bendita ignorância da existência de coisas que podem nos preocupar e aborrecer.

Eu quero acreditar no poder dos sorrisos,

Dos abraços,

Dos agrados,

Das palavras gentis,

Da verdade,

Da justiça,

Da paz,

Do amor,

Da caridade,

Da fraternidade,

Da fidelidade,

Dos sonhos,

Da imaginação,

Dos castelos na areia.

Quero continuar acreditando que se deve devolver o troco a mais recebido no caixa do supermercdo, que não se deve sair durante uma aula ou palestra por respeito e educação a quem está na frente, obedecer a fila do banco ou do cinema, estudar ao invés de pedir pesca ao colega, devolver algo que alguém tenha perdido e ser honesto sempre, haja o que ouver e aconteça o que acontecer, palavra de escoteiro!

Quero ter direito de se feliz para sempre, mesmo até muito além do para sempre, ou quando eventualmente o "para sempre", tenha algum fim. Quero inventar o inexistente, traduzir o impossível e decretar que a primeira flor da primeira aurora de cada dia novo, será de propriedade exclusiva de cada criança da rua, do bairro, do pais ou de qualquer lugar.

... quero ser como a cana. Mesmo cortado, ralado, amassado, ao ser posto na moenda dos dias, ainda assim produzir açucar-alegria. Quero parar de beber como os tolos, que ingerem alcool para tornar as pessoas mais interessantes.

E o que é mais importante: quero estar convencido de que tudo isso vale muito mais do que o poder e o dinheiro! Por isso, tomem aqui as chaves do carro, a lista do supermercado, as receitas do médico, o talão de cheques, os cartões de crédito, o contra cheque, os crachás de identificação, o pacotão de contas a pagar, a declaração de imposto de renda, a declaração de bens, as senhas do meu computador e das contas no banco, e resolvam as coisas do jeito que quiserem porque eu me cansei das pessoas que se preocupam com coisas que provavelmente nunca irão acontecer, que recomendam à secretária que pergunte antes quem está falando para só depois decidir se atenderá o telefone ou não, que são arrogantes e presunçosas com os outros só porque se consideram melhor, que reclamam de tudo e de todos o tempo todo mas não fazem nada para mudar a situação, que se estressam com pequenas coisas que momentos depois deixarão de ser um problema, que passam o dia preocupadas com as contas a pagar e com as poucas quantias a receber e, por isso lhes convém considerar que não existe nada mais importante do que o lucro e que ele é a razão pela qual se deve viver, não importando o que se passa com as pessoas e o que elas sentem. Não aguento mais me aborrecer com todas as outras coisas que todo adulto teima em se pré-ocupar.

A partir de hoje, isso é com vocês, porque eu estou me d-e-m-i-t-i-n-d-o da vida de adulto. Agora se você quiser discutir a questão, vai ter de me pegar, porque: Pique 1 2 3 ...

O pegador está com você !

E para sair do pegador, só tem um jeito: demita-se você também dessa sua vida chata de adulto!

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Baseado nos textos: Eu me demito!/Poças de Lama(poetas desconhecidos), Estatudo do poeta, e outros clássicos da literatura infantil, como O pequeno príncipe, o Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Peter Pan, etc.