TERNURA CARBONÁRIA

Tenho culpa, não, minha senhora. Cometo algum tipo de ilícito, se meus olhos são uns pândegos que saltitam de contentamento, toda vez que te veem? Já fiz de tudo para contê-los, amarrá-los ao luar, mantê-los arredios e bem-comportados. E sem a ousadia fácil da luxúria. Mas um flerte sublimado num par de janelas é ver o ex-desgoverno neoliberal.

Uma vez, involuntariamente, os marotos, de soslaio, meteram flechas pelo desfiladeiro que se fendia no teu busto escultural. Lance fugaz e sorrateiro. A jaqueta de grife era arejada, um cálice de licor à timidez da vista. Aí, inimaginável, de proa, um alvor apoteótico: dois pássaros varonis, voando, às ocultas, escritos em gótico e barroco. Perdoa a indiscrição a respeito do que apenas foi.

De coisas de afeto e carinho de gente não entenderia eu, nenhuma porção de nada. Também lá fui arquitetado para virar monumento! Apenas argila maleável, barro cru, e melhor vou ser assim de artesanato. Daí meu pleito desaforado de andar sempre ao pé de ti, contemplando o teu santuário de pessoa. E que museu de candura pós-modernista que tu és, exposto aí aos assédios devassos destes primórdios de novo milênio. Possível isso for, então me daria pitça de arroba da tua lírica sensualidade.

Caso que vim nascido num atlântico canhestro, deveras bisonho e simplório para, num só supetão, debruçar-me no vértice dos teus resplandecentes vaga-lumes. Quão anchos hangares, os seios!... Teus olhos de dunas, mar além, tudo igual às manhãs, restaurando noites com listras adocicadas de carmesim.

Para o meu olho censor, apenas, não; tu és e estás sendo lua e diva nos jardins do sistema solar. Divindade pagã, acima das artimanhas de todas as deusas, juntas, do Olimpo. Digo: as musas. Tua meiguice de gaivota esvoaça pelo azul, o sol acolá, fazendo arruaças matinais, já meio menino grande. Mas por que botas coisa-feita na tua presa, tornando-me ainda mais frágil e paspalhão, ante a abissal fragilidade humana?

Em era muito enterrada nos tempos, por geração longínqua, não foste apenas domadora de feras pelo teu magnetismo do olhar. Estrangulavas leões nas arenas, jaguares no ar, teus olhos se bulindo, lá do cimo das tribunas de honra, onde régio era teu corpanzil de rainha.

Nesses idos, ou para aquém dali, devias ter empunhado látego suave, cetro indolor como aquele da Tiazinha, peça perversa de majestade. Na fronte, em cintilantes lírios e jasmins, com propriedade da portadora, a coroa senhorial das excelsas criaturas. Djim e querubim, ambos, ainda seriam bobagens poucas.

Então, sim, bem no terreno celestial dos teus olhos, eu te diviso a ti, inteira mulher, de corpo musical, peça de arte, imersa e boiando num baú de mistérios. Fada, domadora de desejos, mas entidade carnal de encantamento. Pomo eslavo, âmbar de rosicler, rosto e corpo feéricos, um amor de fêmea mítica. Azuis a cútis e o sangue, à mercê de. No entanto..., e o outro lado da tigresa que não sei nem me revelas ao estouvado que jamais pretendi ter sido e que já estou?

Vejo-te tão de vez em vez, porque para mim são parcas as auroras. Um dia, quem sabe, se me restasse escolher onde pôr o sol colhido às rosas, não assobiaria duas vezes: eu o recolheria do fundo do fogaréu que vai em ti. Justo eu o apanharia na inquisitória fogueira dos teus hipnóticos olhares de lince. Olhos: estes adereços.

Quantas vezes, tantas, de ti curto-circuito das mãos. E tantas, diversas ocasiões te planejei fixar, fixar com dor de bisturi, e não busquei nem levei jeito algum. O óbice foi transpor a muralha para além da qual desbravaria o dinossauro de fosforescentes pupilas.

Tenho tanto conspirado te acariciar nas meninas-dos-olhos. Ao menos dizer-te, de maneira simples, táctil e derramada quatro ou mais palavras convincentes de bem-querer. Todavia, estimada minha, é árduo implantar uma intentona sentimental em terras já beligerantes, haja vista os horrores de Kosovo, do Paquistão, do Iraque, crianças e mulheres estilhaçadas, a guerra civil não declarada ruminando nos pastos do Bra$il e um capitalismo mundial selvagem, em crise, porém ainda a estrebuchar e roedor dos nossos coletivos haveres do homem.

Como nas brincadeiras infantis, aquelas desusadas contendas de “ficar sério”, frente a frente, intentei vezes te segurar nos olhos, não te segurando à unha, mas, sobretudo, te guardando com maciez e solidez na reciprocidade das labaredas do olhar. Mas qual!... Gesto involuntário, meu olhar, certa feita – tu te lembras? – justo foi bater no desfiladeiro do teu colo, lá onde, também por fresta involuntária, duas lindas dunas ou aves resplandeceram.

Enfim, se “nonsense”, aqui, as ideias rebeldes no canal afetivo. Entretanto, sendo quem és, uma divindade de ficção, mui amada senhora, hoje sobrevivo à hibernação da intermitente chuva do recolhimento. Num arremate absolutamente necessário, palavra de rei seja aferida: eu te reprimia muitos olhares anárquicos, porquanto voluntariosos e gulosos. E aí desmonto aquele instante lúbrico, para não ser militante hipócrita. Edital de religião: qualquer meu sublevado olhar, mesmo que na lonjura da imaginação, esbarra perante a ternura carbonária que ainda, agora, se desabrocha do teu sublime todo-ser.

Fort., 16/11/2008

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 16/11/2008
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