Gotas de Orvalho

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A umidade lhe trazia os aromas orvalhados de lembranças antigas. Queria cultivar a ilusão de que o tempo parara, de que não teria mais que pensar nas agruras advindas desse eterno vazio que carregava consigo.

Olhava para um mundo verde através da janela e sentia-se novamente prisioneira de algum sonho. A cada lembrança, uma coreografia íntima a mantinha ligada ao tempo e ao silêncio. Mesmo assim, parecia ouvir sons difusos, encontros e desencontros nessa dança que sua alma expressava.

Movia-se pelo quarto e revivia aquela linguagem cheia de limitações. Era esse o sentimento de vida que impregnava seus pensamentos. Sobrevivera à fragmentação, à dissolução, à cisão, à ruptura e exilava-se além desses epítetos de um passado opaco.

Parou por instantes. Sentou-se na rede. Aconchegou-se a uma pequena almofada macia. Observou detidamente os objetos e móveis do seu quarto. Nada ao seu redor sugeria qualquer refinamento estético. Tudo era bem rústico, mas acolhedor. Aos poucos ia revelando cada detalhe dentro da alma, equacionando-lhes o sentido. Era um momento de profunda reflexão. Sabia que a esperança seria o próximo porto.

Seu olhar continuava a colher cada nuança daquele ambiente e percorria analiticamente os reflexos cintilantes dos espectros de luz que pousavam sobre uma foto antiga. Absorta punha-se a acariciar o tempo naquele rosto jovem que lhe sorria. Era inegável a emoção e a suavidade que aquele gesto lhe proporcionava.

Cansada daquela madorra, levantou-se meio desajeitada e dirigiu-se ao gabinete. Sentou-se na cadeira giratória. A velha escrivaninha de seu pai parecia convidá-la ao devaneio. Como sempre gostava de fazer, tomou em sua mão esquerda um lápis meio desgastado pelo uso e pôs-se a rabiscar sobre uma folha de caderno. Palavras foram surgindo aos borbotões, jorrando longos parágrafos. Sorria, meneando a cabeça. Percebia que mesmo com tanta simplicidade, poderia surgir dali algo rebuscado, produto de pensamentos contraditórios.

Aos poucos ordenava sobre o papel aquele longo enredo. Alguns trechos tinham vaporizado o que queria dizer, mas cada palavra tinha o tom justo do tempo, a sólida simetria de sua história e tudo que sonhara realizar por longos anos.

Não queria expor complexidades. Queria apenas sintonizar com a paz daquele ambiente. Sentia-se ali acolhida pelo passado que brotava do ordinário de sua vida.

Apoiou a cabeça com a mão direita. Escrevia compulsivamente. O banal e o fantástico ali se cruzavam. A realidade se vestia de um exotismo solene e traduzia, naquela expectativa, o momento criativo. A linguagem ia despetaladando a pura emoção de um instante...

Não poupava as próprias idéias. Buscava a atualidade como atributo decisivo. Sentia-se encurralada entre a saudade e o impasse de reescrever em sua alma essas novas sensações, essas lembranças rotundas e cristalinas. Essa matéria de que só os sonhos são feitos... Gotas de orvalho.