CASQUINHA DE SORVETE
 
 
Sentado na soleira da porta, degrau baixinho, colocava meus joelhos à altura de meu queixo. Neles apoiava a cabeça sob as mãos cruzadas. O sol batia de frente o que fazia suar na testa e embaçar as lentes dos óculos. À frente a visão da preguiça. Pessoas em passos lentos se dirigiam aos seus afazeres. Um ou outro mais animado tirava o chapéu para o cumprimento aos conhecidos. O sol quente derretia o bom humor. Mulheres usavam sombrinhas e leques para abanar. Todos tratavam de se proteger nas sombras da marquise. Moleque passava correndo, caniço na mão em direção ao rio para mais uma tarde de estripulias. O caminhão GM ano 47 estacionou em frente para carregar materiais na loja de ferragens. Os cachorros que dormiam na entrada da loja foram enxotados aos pontapés. Correram um pouco, mas logo voltaram e se aninharam às minhas costas, protegidos do sol. Um passante descartou descuidadamente uma casquinha de sorvete à minha frente. A casquinha rolou e se alojou no meio fio. Fiquei observando e analisando a possibilidade de usufruir aquela guloseima. O sol estava forte, o suor escorria pela minha testa. Os cachorros ergueram o pescoço, mas desistiram quando os contive com um sussurro. Os dois me olharam com olhos de coitadinhos e voltaram a dormir. O Bastião estava pronto para ajudar no carregamento da carga. Era um rapaz despossuído de inteligência, como dizia o vigário, abobado, como dizia o povo. Estava sempre pronto a ajudar. O motorista tirou da carroceria um rolo de cordas e deixou sobre a calçada. O Bastião, solícito e faceiro trazia um vaso sanitário nas costas, tropeçou nas cordas e esparramou-se na calçada. O vaso virou cacos. O proprietário gritava impropérios com as mãos à cabeça. Bastião com um corte na testa tentava juntar os cacos. Os cachorros diante do tumulto resolveram dar o fora. Foram para o pátio da igreja, usufruir a sombra dos abacateiros. Os homens expulsaram o Bastião. Ele colocou as mãos no bolso, como sempre fazia, dava uma ou duas voltas como pião e saía assobiando como se nada houvesse acontecido. Atravessou a rua e sentou-se ao meio fio, à minha frente, comentando que vinha de uma empreitada de importância. Havia carregado muitos sacos de erva mate nas barcaças lá pros lados de Porto Amazonas. A testa sangrava levemente misturando suor e sangue. Pegou um punhado de terra juntado ao meio fio e esfregou na testa. O sangue estancou de imediato.
A casquinha permanecia ali escorrendo um restinho de sorvete o que fez que algumas formigas enfileiradas se aprontassem para tomar posse. Bastião olhou a casquinha. Percebi a intenção. Sem perder tempo me apossei da guloseima. Raspei com os dedos as formigas, separei a parte mais molhada para o meu companheiro de calçada e comi com gosto o restante. Entrei em casa, bati a porta e fui tomar água fresquinha da moringa de barro.
Muito quente as tardes da minha infância.