Deus do Coração de Pedra

Havia um homem que silenciosamente

vivia sua vida a ensinar

jovens a amarem o conhecimento,

a aprenderem a pensar.

Sentia-se feliz em seu mister,

preocupava-o sempre

a pouca disposição que o alunado dispensava

ao aprendizado.

Possuia mulher e três filhos,

depois veio um neto,

que era o único que o tirava do sério,

e que ele embevecido atendia.

Criara os filhos com severidade,

exigindo sempre que todas as obrigações

fossem cumpridas, e achava

dispensável os elogios e reconhecimentos.

Amara muito a parceira, mas com os anos se distanciaram.

Temperamentos diferentes, ela extroverdida, ele calado,

ela era a ponte entre os filhos e ele

e muitas foram as batalhas enfrentadas.

Este homem não dizia nunca o que sentia,

o que pensava, o que gostava,

só queria ensinar ao mundo e trazer a paz no coração!

Diálogo era para ele impossível,

a companheira falava pelos dois,

as paredes argumentavam

e era um triângulo perfeito!!!

Um dia ele disse > se voce sente necessidade

de falar, fale que eu te escuto.

E era um monólogo consentido,

mas improdutivo, e às vezes angustiante.

Amava igualmente os filhos,

mas nunca os dissera,

mantendo-se sempre na condição de pai

e senhor absoluto da verdade,

pois afinal era um Mestre,

que passara boa parte da vida

transmitindo conhecimentos,

ensinando a garotada e portanto conhecia

de tudo um pouco e sua cátedra era o seu

universo em expansão.

Os anos foram passando e

as distâncias aumentando entre a família.

Os filhos enlaçaram-se fortemente

e adultos tornaram-se grandes amigos entre os três,

confidentes, inseparáveis.

Autonomos independentes,

tocavam a vida pra frente,

batalhadores incansáveis pelo sobreviver

com a dignidade que lhes fora ensinada.

Momentos de lazer com o pai_professor junto,

foram escasseando e a mãe assistia impotente

ao descongraçamento.

Muitas vezes alertara a ambos os lados,

sobre a necessidade de uma aproximação

maior, de uma abertura para diálogo,

mas tudo foi em vão.

Havia no entorno dele

um amplo espaço dificil de ser penetrado.

Nem a parceira conseguira

com os anos de convivência,

adentrar neste sagrado recinto.

E muitas vezes ela jocosamente

dizia > precisamos explorar estas muralhas

chinesas, para ver o que há depois

da ponte...e ele a olhava e nada dizia,

apenas um leve esboçar de sorriso.

O que posso dizer desta estória,

é que os filhos amavam muito este pai

e com certeza este

homem os amava também, mas

o seu coração era de pedra,

destas toscas, brutas que não aceita

que o cinzel a desbaste,

e nem que a emoção o domine.

Aprendera a represá-la,

supondo que assim estaria livre do sofrer,

pois

quem ama sofre, mas também é mais feliz!

Assim num belo dia ele resolveu partir.

Alegou que precisava voltar a ser ele mesmo,

pois em trinta e sete anos de vida em comum

havia se distanciado de sua essência,

e precisava encontrá-la de novo.

Surpresa geral, ou até que nem tanto,

afinal ele havia silenciado sempre

e agora resolvera falar o que sentia,

embora em poucas palavras, mas dissera tudo

embora em poucas palavras > estou indo embora,

quem quiser que venha comigo,

quem não quiser que fique,

vou para a terra onde nasci, procurar

minhas raizes, viver a minha vida.

Independência ou morte,

aberta a porta da gaiola dourada,

o homem de coração de pedra partiu

deixando estupefatos a prole e a parceira,

ainda com o cinzel na mão,

a refletir sobre a luta de uma vida inteira

e disposta a jogar o instrumento no mar da praia,

para não ter que usá-lo nunca mais,

com ninguém mais, cansada de guerra.

Contudo o nobre professor partiu,

levando um pedaçinho de cada um

acomodado entre as pedras do seu coração.

Mas se um dia ele voltar,

será recebido com beijos e abraços,

pois ensinou grandes lições.

Que todos somos passageiros

de uma vivência que se expande e evolue.

Que há o momento da chegada

assim como o da partida.

Que os apegos são desnecessários

nesta escola que é a vida.

E que os sonhos, ainda que impossíveis,

devem ser tirados da gaveta e

vividos intensamente,

ainda que solitário a quilometros de distância.

Afinal dentro do livre arbítrio

todos somos senhores do nosso destino.

E vamos buscar sempre aquilo que necessitamos

para nos sentirmos mais felizes.

Ainda que os nossos corações sejam de pedra

ou de cristal,de pluma ou de vidro,

ainda assim há que se viver a vida que se busca,

sem amarras nem atrelamentos,

sem cobranças e nem ressentimentos.

Vai homem do coração de pedra,

vai procurar outro cinzel que te desbaste,

quem sabe um novo amor,

reconstrutor da vida e dos desejos ocultos,

quem sabe a paz tão almejada,

sózinho consigo mesmo.

Vai ao encontro do teu eu,

do teu inconsciente pleno de anjos e demônios,

como qualquer ser mortal,

e trava a tua ultima batalha,

quando a tua dualidade se defronta e se confronta

e só então saberás o peso que destes ao viver e conviver

e o quanto tudo valeu a pena,

pois se a alma não é pequena,

no fundo do coração de pedra, há de existir uma pena,

aquela que sangra por não saber dizer

EU AMO VOCÊS.

Santos, SP

06/03/06

04:46 hs.

Guida Linhares
Enviado por Guida Linhares em 10/04/2006
Reeditado em 14/04/2006
Código do texto: T137094
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