interlúdio

Era hora fora de chão, rala, parca, era hora e havia em mim a combustão completa dos sentidos, eu era abstração, abstrato, absorto, pois que da queima restou ausência de mim manifesta em carbono e água, a liquidez de emoções estancadas, sensações estagnadas, num barco onde eu remava com pensamentos circulares.

Tinha cheiro de infância, aquele oceano, porém, era imóvel, suas ondas não me lançavam à frente nem me atrasavam. Eu via, sob as águas alvas, a ânsia imediata da criança cheia de vontade, e quanto mais essa criança crescia, mais vinha o adulto cheio de si, vazio de mundo.

Fiquei horas mergulhado nessa introversão caótica, e essas horas de minutos se tranformaram em dias de anos que não soube medir. Voltei de lá com as notas de timbre claro da infância, mas, como se fossem areia em minhas mãos, escorreram. As outras notas, as de hoje, porém, ficaram, seu timbre opaco formou uma harmonia densa, espessa e pegajosa, como se pesasse e grudasse em minhas mãos.

À grande hora do absurdo seguia-se um interlúdio para retornas às gentes. São, a mim, dois universos demasiadamente distintos, um habitado por anjos e arcanjos coloridos e cheios de poder, outro por tédios, banalidades e vilanias. Eu sou, ainda assim, bruto, um rude desencontrado, assistindo a minha comunicação falhar, faltar, para que me seja impossível compartilhar.

Quando é noite e a lua me visita, vou ao outro lado, e lá bebo e comemoro em gozo, pois desses prazeres aprendi a mestrar, e reger seus ritmos me agrada, porquanto o tédio não se me venha visitar novamente.

Sinto saudade da coxilha dos ventos, onde os trigais se balançavam em ondas harmônicas, simétricas, suaves, como se fossem regidos por Mozart, como se tivessem mãos para acariciar e acalentar minha alma. Hoje, afasto essa saudade com os afagos dum corpo igualmente suave, sutil, cheirando à óleo de castanha ou buriti, e ela a mim agrada o corpo, arrefece minha pele, e enterra os pensamentos circulares.

Quando, em mim, ela termina sua sede, eu ainda estou hirto, e minha sede nunca cessa, nunca cessará, é, pois, uma ânsia de infinito. Nela, entretanto, só vejo o gozo atendido, como uma criança, o corpo desfalecido em cansaço e suor, e ali está bem claro o limite, contrário ao meu infinito, e teimo comigo para circunscrever aquele pequeno planeta, e assim vou, tal um corpo celeste negro, um halo ao avesso, murcho flores, empalideço cores para alimentar de vida o monólogo daquela combustão, aumentar a chama com o carvão dos corpos que gemem e gozam em mim.

Era uma tarde de verão, e os vendedores de picolé cruzavam as ruas. Ela tomou em suas mãos um picolé mini-saia, até hoje o cheiro e o gosto me seguem, chupou o doce com vontade e gula insaciável. Acho que tomei para mim a parte do insaciável e deixei ela chupando o picolé como se quisesse de volta o que eu havia lhe tirado.

Esse escárnio que hoje vês em meu sorriso é a ironia que lanço ao espelho, pois são tão carente de mundaneidade quanto uma sombra de seu dono.

Ao conversar, olho nos olhos das pessoas, elas desviam o olhar constantemente, como se eu pudesse lhes roubar algo, bem que eu gostaria, mas o que desejo já lhes falta, e não foi tomado à força, mas esquecido numa fila, esperando. E seus globos são vagos, suas órbitas tangentes à verdade.

Quanto mais caminho pelos ermos do meu mundinho, quanto mais das minhas miudezas me torno consciente, tanto mais doloroso, demorado e inútil se torna meu interlúdio.

Que tal terminar a sonata e ir para o próximo ato?