Só mais uma
Olho para a chuva que cai,
Cada gota um olho espectral
Sento-me na beira do cais
Sou só mais uma em potencial.
Como pode o carisma anormal
Considerar-se especial?
Salubre pensar dessa maneira
Quando me entorno pelas beiras,
Procurando o pedaço
Que outrora me compunha inteira.
Queria persuadir-me a despertar a ira,
A rasgar essa cínica e dura compostura,
Com a qual me comporto todo dia
Como se fosse porcelana e formosura,
Quando me defino como dualidade arredia.
Sou metáfora de frio inferno,
Tenho pouco tempo a oferecer
Não me satisfaço com desejos insanos
E a mim mesma causo os danos
- cicatrizes convulsas, ferimentos internos –
que me esburacam o sangue
e deixam essa fresta onde só a treva queima,
como uma vela velha e negra feita de panos.
Quisera derramar com violência
Essa bomba nuclear que é meu coração...
A despeito de tudo, sou nada,
Sei disso sem ter que fazer oração,
E recorrer a alguma causa despropositada.
Prefiro os cínicos aos de alma acabada.
Prefiro os céticos aos que não tem ambição de nada.
Soa cruel? Assim o sou.
Côo a vingança e nela deposito
E nela concluo a luta
do que resta da esperança
De abrir minha alma com todo o zelo de uma prostituta.
As gotas da chuva? Estas sempre vêm, sempre vão...
Seu fim? Todas se estilhaçam no chão.
Em suma, sou só mais uma.