BAÚ

E quando percebi estava indo em direção ao sótão. Subi a escada silenciosamente, meu íntimo tentava rejeitar a possibilidade de voltar aquele lugar sombrio e abandonado.

Cheguei ao último degrau, olhei para trás e percebi a distância entre os outros cômodos. Estava de pé em frente aquela porta estreita, escura e empoeirada. Tive vontade de recuar, perguntava-me qual o meu objetivo desse regresso, de despertar o que estava hibernando há tanto tempo.

Indecisa, mas curiosa, num misto de consciência e inconsequência... Rodei o trinco da porta, não consegui abri-la de imediato, pois, estava bastante enferrujado, precisei fazer certo esforço para destravá-lo. Escutei um “clic” e o ranger da porta se abrindo.

Nossa! Estava muito escuro, um cheiro de mofo insuportável que chegava a sufocar.

Tossi, talvez fosse uma reação nervosa.

Toquei a parede tentando encontrar o interruptor. Achei! Acendi a luz, mas a iluminação continuava fraca.

Meu coração acelerou, levei um susto ao me deparar com aquela cena: teia de aranha espalhada por todo canto, poeira do chão ao teto o que tornava o ambiente ainda mais cinza. O tapete estava gasto e desbotado pela ação do tempo... Caminhei lentamente, um medo me invadia... De repente tropecei em um objeto largado no meio do sótão, de imediato não soube identificar o que era, pois, a luminosidade era escassa.

Agachei-me, soprei com força e com as mãos, dei leves batidas espalhando ainda mais a poeira. Era o velho baú... Ah! O baú mágico da minha adolescência...

O couro lustroso, agora estava opaco e ressecado. Abri cuidadosamente, meu coração acelerou ainda mais seu ritmo.

A caixinha... Minha caixinha de música com a bailarina... Ela estava novamente em minhas mãos... Não hesitei e dei corda, fechei os olhos e ouvi “Love Store” e lembrei-me das histórias do passado... Escutei a risada dos meus amigos quando jogávamos o jogo da verdade, quantas verdades reveladas... Quantas verdades omitidas... Escutei a voz daquele que cantava e tocava violão para mim...

Recordei nossos olhares... Abri os olhos, voltei a remexer no baú. Um caderno rabiscado, eu não tinha diário, não gostava de diário, mas tinha um caderno onde colocava meus rabiscos, rabiscos daquilo que eu batizara de poesias, receosa abri o caderno, encontrei uma página dobrada, fui vagarosamente desdobrando, ela estava fina e amarelada, tive medo de rasgá-la, li o conteúdo e percebi que o que escrevi no passado ainda se faz presente... Lá estava parte de uma das minhas poesias preferidas do grande poeta Castro Alves: “Eu sou como a Garça Triste que mora na beira do rio... A orvalhada da noite me faz tremer de frio... Feliz da araponga errante que é livre e que livre voa...”

Senti meus olhos arderem, acho que é a poeira...

Encontrei os discos de vinil e os canhotos de ingressos de “shows”. A lembrança mais uma vez invadiu-me. Éramos livres, riamos de tudo, não precisávamos nos alcoolizar nem nos drogar, nós precisávamos apenas da companhia uns dos outros para sermos felizes, “éramos felizes e não sabíamos ...”

Agora foi a vez de encontrar os papeis de balas e de chocolate sonho de valsa, não era muito freqüente comer chocolate e ainda menos frequente era saboreá-lo com alguém especial... Vi seus olhos negros sorrindo pra mim.

Voltei ao baú, descobri o lencinho indiano de seda, aquele que eu amarrava nos cabelos quando os prendia num rabo de cavalo, num impulso levei-o em direção ao rosto e cheirei, aspirei ao seu perfume... Ainda lembro porque o seu cheiro ficou impregnado no meu lenço... Eu enxuguei o suor da sua face naquela partida de futebol contra os meninos da outra rua, era uma rivalidade... Mas vencemos e seu troféu, foi o meu também porque foi nosso primeiro beijo... Ainda sinto a maciez dos seus lábios adocicados.

Peguei algo no fundo do baú... Um álbum. Estranhei a presença do álbum ali, fui passando as páginas, eu ria muito com as fotos... Cheguei à última página, meu semblante se modificou, minha face escureceu, meu sorriso calou, meu coração congelou, uma dor imensa se apossou da minha alma, não contive as lágrimas, cobri meu rosto com as minhas mãos e chorei compulsivamente.

Lá estava o recorte de jornal que guardei para poder acreditar que não foi um pesadelo, que infelizmente era realidade... Encontrei sua foto... Era o convite para a sua missa de sétimo dia...

Por que fui voltar ao sótão e remexer naquele maldito baú?

Aglaure Martins
Enviado por Aglaure Martins em 17/04/2009
Código do texto: T1544697
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